quinta-feira, 24 de outubro de 2013

322: Ribeira

Vira o rosto.

O homem está sentado. O tronco e os membros em estado de inércia com o espaço próximo ao redor enquanto observa ao longe o movimento diante dos seus olhos. Uma imagem distante se desenrola num outro plano, o que faz dele uma presença ausente: seu corpo não é medida alguma pr´aquilo que os olhos vêem. Um enorme ecrã se estende conforme o movimento o faz ocupar, contínuo e aos pedaços, o espaço da sua visão. Segue como uma tela única constituída da justaposição dos muros de propriedades diversas, seccionada pelos portões encrustados e pela obstrução da visão que se faz eventual no trajeto que se segue como uma linha colateral daquela em que ele mesmo se encontra sobre e percorrendo, em cujo título se atesta avenida tão grande quanto o país do nome que carrega.

Rabiscos, desenhos, mensagens cobertas de tinta e agora ilégíveis. A caligrafia anônima a olhos leigos se ajusta ao cinza concreto, matéria bruta da qual é feita a película. Mas a atenção é uma espectadora incansável a encontrar alimento nos dejetos que lhe atiram à face. 

Quando começou?

Qualquer cineasta em resposta lhe poderia dizer que, como em um filme qualquer, começou num movimento; quando deixou de ser vida e passou a pura observação; quando o não-filme deu lugar ao seu objeto de negação; quando a atenção resoluta tomou a si o enquadramento. Agora, o prólogo ultrapassado dá lugar a uma leitura que pede ser decifrada: “Búzios e cartas: tel. ####-4881”, estampada por cima da pintura branca sobre o muro, que serve de rótulo à mensagem. O prefixo está oculto sob a sombra de um veículo de carga estacionado a frente do número e em movimento em acordo com a imagem.

O espectador sente-se lesado pela informação ausente e procura em vão resposta no reencontro com a imagem passada, uma vez que ela se foi e deixou na memória apenas aquilo que foi: é a ocultação mesma que se expõe como cena e legenda. Mas o que será destas cartas e destes búzios sem um número de telefone visível e referencial? Pede o enredo que seja real; que um número dado ofereça acesso, a qualquer um que deseje, à realidade que habita aquele código representado. Não se trata apenas do naturalismo vazio ou do detalhamento burocrático, é a diegese mesma da obra que está em jogo; como faz o ator ficção a partir dos sentimentos reais; reais como objetos de cena, filmados apenas porque existem de fato. Mas é também o juízo de um gesto de ocultação deliberado ou de algum modo intencional que o faz procurar ali sentido intrínseco.

Mais tarde, a frase reaparece sobre a extensa muralha e é possível reconhecer um 2 transbordando por detrás de uma barraca de vendas, permanecendo não visíveis os números restantes daquele prefixo. Sabe agora, no entanto, que há um enredo em desenvolvimento a espreita por conclusão. Não se furtará um apenas segundo em que a atenção não seja o escrutínio de uma busca orientada e diligente que haverá logrado alguns minutos depois: “Cartas e búzios: tel. 2462-4881”.

Tal imagem sugere, então, presentificar o futuro não apenas porque faça menção a um artifício suposto qualquer de adivinhação ou simpatia oferecido como serviço, mas porque o prefixo do telefone anuncia a região de destino daquele observador em deslocamento. Mas o futuro não é personagem eficaz no drama que tem como público um homem céptico e desesperançoso como ele. Ao contrário, é a sensibilidade já gasta a assombrá-lo por trás dos olhos quando retoma da memória uma frase que via com frequência sobre muros como aquele há pelo menos 15 anos. No momento, quem sabe, escondida sob a pintura branca do novo jargão: “Quércia vem aí!”. 

Jogam-lhe na cara um futuro em vista e ele não toma dele senão o passado arqueado.

Como na máxima de agora, aquela outra anunciava uma profecia. Mais uma, em seguida, será lançada como previsto no decorrer do trajeto: “Cartas e búzios - trago pessoa amada em 3 dias”. Mas a pessoa amada, exatamente como Quércia, não virá. E se o homem nunca acreditou em Quércia - pode mesmo ter se dado por satisfeito com a ausência do figurão exortado -, tampouco o amor lhe parece destino plausível e desejado. Porque sabe, sobretudo, que não é o destino que a viagem de ônibus traz como recompensa a celebrar aquela obra cronometrada que vivencia, mas o trajeto atrás de si que o viajante deixa como pagamento. O registro insignificante do tempo perdido. Pediria, ainda, que a história imortalizasse o caminho percorrido e lhe justificasse o tempo desperdiçado, mas a história tem desígnios maiores e mais dignos. O que lhe resta é, então, o pesar melancólico de um descanso póstumo como consolo.

Pois enquanto a experiência viva anuncia o destino laureado da superação do espaço; enquanto a mensagem anuncia o final feliz muito antes do final iminente; o herói a caminho e o amor que espera, como o Cristo ressuscitado diante dos fiéis, no terceiro dia; sabe que, tanto quanto o filme é movimento, o destino final é a morte.

E não será preciso jamais perguntar quando acabou.
 

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