Vira o rosto.
O homem está sentado. O tronco e os membros em estado de inércia com o espaço próximo ao redor enquanto observa ao longe o
movimento diante dos seus olhos. Uma imagem distante se desenrola num
outro plano, o que faz dele uma presença ausente: seu corpo não é
medida alguma pr´aquilo que os olhos vêem. Um enorme ecrã se
estende conforme o movimento o faz ocupar, contínuo e aos pedaços,
o espaço da sua visão. Segue como uma tela única constituída da
justaposição dos muros de propriedades diversas, seccionada pelos
portões encrustados e pela obstrução da visão que se faz eventual
no trajeto que se segue como uma linha colateral daquela em que ele
mesmo se encontra sobre e percorrendo, em cujo título se atesta
avenida tão grande quanto o país do nome que carrega.
Rabiscos, desenhos,
mensagens cobertas de tinta e agora ilégíveis. A caligrafia anônima
a olhos leigos se ajusta ao cinza concreto, matéria bruta da qual é
feita a película. Mas a atenção é uma espectadora incansável a encontrar alimento nos dejetos que lhe atiram à face.
Quando começou?
Qualquer cineasta em
resposta lhe poderia dizer que, como em um filme qualquer, começou
num movimento; quando deixou de ser vida e passou a pura observação;
quando o não-filme deu lugar ao seu objeto de negação; quando a
atenção resoluta tomou a si o enquadramento. Agora, o prólogo
ultrapassado dá lugar a uma leitura que pede ser decifrada: “Búzios
e cartas: tel. ####-4881”, estampada por cima da pintura
branca sobre o muro, que serve de rótulo à mensagem. O prefixo está
oculto sob a sombra de um veículo de carga estacionado a frente do
número e em movimento em acordo com a imagem.
O espectador sente-se
lesado pela informação ausente e procura em vão resposta no
reencontro com a imagem passada, uma vez que ela se foi e deixou na
memória apenas aquilo que foi: é a ocultação mesma que se expõe como cena e legenda. Mas o que será destas cartas e destes búzios sem um número de telefone visível e referencial?
Pede o enredo que seja real; que um número dado ofereça acesso, a qualquer um que deseje, à realidade que habita aquele código representado. Não se trata
apenas do naturalismo vazio ou do detalhamento burocrático, é a
diegese mesma da obra que está em jogo; como faz o ator ficção a partir dos sentimentos reais; reais como objetos de cena, filmados apenas porque existem de fato. Mas é também o juízo de um
gesto de ocultação deliberado ou de algum modo intencional que o
faz procurar ali sentido intrínseco.
Mais tarde, a frase
reaparece sobre a extensa muralha e é possível reconhecer um 2
transbordando por detrás de uma barraca de vendas, permanecendo não
visíveis os números restantes daquele prefixo. Sabe agora, no
entanto, que há um
enredo em desenvolvimento a espreita por conclusão. Não se furtará
um apenas segundo em que a atenção não seja o escrutínio
de uma busca orientada e diligente que haverá logrado alguns minutos
depois: “Cartas e búzios: tel. 2462-4881”.
Tal imagem sugere,
então, presentificar o futuro não apenas porque faça menção a um
artifício suposto qualquer de adivinhação ou simpatia oferecido
como serviço, mas porque o prefixo do telefone anuncia a região de
destino daquele observador em deslocamento. Mas o futuro não é
personagem eficaz no drama que tem como público um homem céptico e
desesperançoso como ele. Ao contrário, é a sensibilidade já gasta
a assombrá-lo por trás dos olhos quando retoma da memória uma
frase que via com frequência sobre muros como aquele há pelo menos
15 anos. No momento, quem sabe, escondida sob a pintura branca
do novo jargão: “Quércia vem aí!”.
Jogam-lhe na cara um futuro em vista e ele não toma dele senão o passado arqueado.
Jogam-lhe na cara um futuro em vista e ele não toma dele senão o passado arqueado.
Como na máxima de
agora, aquela outra anunciava uma profecia. Mais uma, em seguida, será
lançada como previsto no decorrer do trajeto: “Cartas e búzios - trago pessoa
amada em 3 dias”. Mas a pessoa amada, exatamente como Quércia, não
virá. E se o homem nunca acreditou em Quércia - pode mesmo ter se
dado por satisfeito com a ausência do figurão exortado -, tampouco o
amor lhe parece destino plausível e desejado. Porque sabe, sobretudo, que não
é o destino que a viagem de ônibus traz como recompensa a celebrar
aquela obra cronometrada que vivencia, mas o trajeto atrás de si que
o viajante deixa como pagamento. O registro insignificante do tempo
perdido. Pediria, ainda, que a história imortalizasse o caminho
percorrido e lhe justificasse o tempo desperdiçado, mas a história tem
desígnios maiores e mais dignos. O que lhe resta é, então, o pesar
melancólico de um descanso póstumo como consolo.
Pois enquanto a
experiência viva anuncia o destino laureado da superação do
espaço; enquanto a mensagem anuncia o final feliz muito antes do
final iminente; o herói a caminho e o amor que espera, como o Cristo
ressuscitado diante dos fiéis, no terceiro dia; sabe que, tanto
quanto o filme é movimento, o destino final é a morte.
E não será preciso
jamais perguntar quando acabou.