sexta-feira, 13 de abril de 2012

Dois críticos debatem teoria literária.

O primeiro, sentado de frente para o apoio de costas da cadeira, onde ele apoia um dos braços enquanto o outro gesticula conforme a sua argumentação: - O texto politiza uma cena ordinária através de uma representação animalizada da luta de classes. A adolescente faz as vezes de uma burguesia tirânica, mas ao mesmo tempo lacônica, sem voz. Os cabelos coloridos enumeram as cores da superficialidade dessa classe, o consumo vazio, letreiros iluminados anunciando produtos sem razão ou significado. Os cachorros, no entanto, falam. Como na revolução de George Orwell, eles tomam consciência da linguagem através de uma investigação aproximada do mundo. É a mancha que lhes chama a atenção e os incita ao diálogo, mas não a mancha porque é visível, como a mancha porque tem cheiro. Trata-se de uma busca por essências e a revolução virá conforme esses animais perceberem que a mostarda, símbolo do capitalismo em voga, não os alimenta e o seu cheiro não é senão uma forma em sinestesia da conhecida visualidade superficialista dessa sociedade de consumo.

O segundo crítico, sentado a frente do primeiro, com as penas cruzadas delicadamente, repousa uma das mãos sobre o joelho enquanto na outra ele maneja um cigarro que leva a boca regularmente em um movimento carregado de expressão e efeminado: - Devo discordar de você, meu caro! A representação não tem em vista alguma revolução, muito pelo contrário. Não é a luta de classes que se lê nessas linhas, senão a própria rigidez de uma estrutura engessada concebida no âmbito de uma religião monoteísta. Os cachorros são conduzidos, ainda que em nenhum momento essas amarras da condução estejam explícitas; não se fala de coleiras ou correias, perceba você. No entanto, a adolescente, que é descrita secundariamente como fosse coadjuvante no enredo, tem papel central nessa estrutura; ela conduz. Os cachorros tem o dom da palavra e conversam entre si, mas o diálogo não chega aos ouvidos da adolescente que permanece alheia na narrativa. Ela é a própria metafísica, e a maneira como é representada sob a face de uma adolescente rebelde dignifica uma ironia sutil no interior do texto: a metafísica, não sendo acessível pelos sentidos (pela visão dos cachorros ou pelo olfato, que seja, que permanece recluso ao dispor insignificante de uma mancha de mostarda) deve ser imaginada tal qual um personagem, uma alegoria. Trata-se de uma adolescente de cabelos coloridos, mas poderia ser um mergulhador trajando um escafandro ou um homem em trajes antigos com barba e longos cabelos.

Por aí, a discussão se estende.

Mais tarde, entra em cena, uma ovelha. Ela cumprimenta os senhores críticos com um gesto positivo que faz com a cabeça e se senta no chão, sobre as patas traseiras. Inicia assim seu discurso: - Não pude deixar de notar que os senhores falavam a respeito de um texto em que dois animais ensejam um diálogo súbito e que parece dar margem as mais diversas teorias prevendo símbolos e alegorias que, talvez, e os senhores hão de convir que isso é uma hipótese razoável, não estivessem lá pensadas originalmente. Mas eu não vim aqui para cotejar uma declaração sobre as intenções iniciais do autor, nem para dizer-lhes equivocados em respeito as suas teorias, de outro modo, tomo o lugar apenas para encetar a minha própria teoria. Penso nos cachorros como a celebração do instinto. O autor, tivesse ou não em mente esse caráter impulsivo e natural da escrita, escreveu, simplesmente. Deu margem as imagens que o assaltaram em criação inoculada dentro de uma imaginação selvagem e escreveu. – Nesse momento, a ovelha faz uma pausa para se coçar; coça-se na altura das costelas com uma das patas traseiras, e continua – Ora, não é curioso que também a menina que se forma em sua imaginação tenha aparência incomum? A verossimilhança, quando confrontada com a imaginação mais bruta parece sempre referida por um aspecto significativo dessa brutalidade da linguagem, que deposita sobre as imagens uma sonoridade vulgar e conforma um quadro familiar e compreensível com seu interlocutor ainda quando das imagens originadas no absurdo. Mas a natureza dessas imagens é indiscutivelmente selvagem: o moicano sobre a cabeça da moça, os cachorros em diálogo, a mostarda, ah, a mostarda! Esse tempero tão ordinariamente ácido e indigesto. Devemos lembrar, que em qualquer das hipóteses, trata-se de um animal empunhando as palavras...

Antes que a ovelha terminasse seu discurso, um senhor idoso trajando uma fantasia de Super-homem invade a sala, interrompendo a locução da ovelha e pergunta diante do grupo: - Aqui é que acontecem as aulas de defesa pessoal contra insetos e aracnídeos? – O cavalheiro com o cigarro na mão, já quase a queimar-lhe os dedos, respondeu ao senhor: - Não meu senhor. Aqui estamos debatendo teoria literária conforme o título do texto indica. Apenas essa ovelha intrometida é que não tem razão de ser, e agora o senhor, é claro. De todo modo, as aulas de defesa pessoal contra insetos e aracnídeos acontecem na sala 403, logo no fim do corredor. – O senhor pede desculpas e se retira. O efeminado então atira ao chão o cigarro, que a essa altura constava apenas do filtro, e desviando o olhar do senhor a ovelha, sugere a retomada: - Você dizia...?

A ovelha olha para um lado e para o outro e em tom de fofoca, indaga ao cavalheiro que acabara de lhe dirigir a atenção: - Querida!! Quem é essa criatura esquisita que acabou de cair de para-quedas?!? – E o senhor, já excitado e totalmente entregue aos trejeitos que o particularizavam desde o inicio da cena: - Meu amor, isso aqui é assim todo dia! Uns bofes esquisitíssimos aparecem toda semana para essa aula de defesa pessoal contra insetos e aracnídeos. As vezes você esbarra com um com tentáculos pelo corredor, as vezes uma senhorinha quase batendo as botas com um par de óculos tãaaoooo démodé! Mas querida – e nesse momento o crítico olhou firme nos olhos da ovelha e fez as vezes de quem lhe daria um conselho: - A aula é ótima! Acho, inclusive, que você deveria se inscrever pra ver como é. Vi você aí se coçando e você sabe que pulga é aracnídeo, num sabe?

Nesse momento, a ovelha deu as costas ao cavalheiro erguendo ao alto o pescoço como que ofendida com a insinuação do crítico e saiu da sala sem nem ao menos um “bééé”. Os críticos se entreolharam e como que não entendessem a reação do animal, se levantaram, juntaram seus papéis e caminharam juntos até o elevador do prédio. Pelo corredor, esbarraram ainda com dois caquéticos senhores: um índio e um policial. E tiveram ainda o desprazer de testemunhar a nudez do homem obeso que, fantasiado de Adão, não tinha suficiente proteção para quantidade absurda de carne e pele que transbordava de seus ossos. Já no elevador, e antes que se despedissem, um disse ao outro: - Essa gente é horrível! – O outro respondeu logo em seguida: - Definitivamente uma gente horrível!

3 comentários:

  1. Hahahahaha

    Adorei esta sua verve! Explore mais... Eu asseguro, na qualidade de aracnofóbica, que as aulas de defesa pessoal contra insetos e aracnídeos é muito mais do que bem vinda...

    Vou recomendar esta leitura para o ganso que habita a minha rua e que sai para passear com sua 'dona' depois das onze da noite (sem sacanagem alguma, muito sério).

    ;)

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