quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A mágoa recipiente

 

Kreuzberg Merkezi – estampa o arco arquitetônico formado pela junção de dois edifícios a partir de um anexo que sobrepassa a rua, deixando abaixo de si passagem para os carros que, no entanto, precisam dar preferência aos pedestres que circulam e atravessam de um lado ao outro, como indicam as marcas brancas repetidas no asfalto sob seus pés. 

Kreuzberg Zentrum, traduzindo a expressão anterior (em turco), aparecerá do outro lado conforme o passante gire o pescoço para trás e para cima, enquanto segue seu caminho através deste portal disfarçado de edifício, que logo depois ganhará um nome na medida mesma em que o sujeito se tente localizar: Kottibusser Tor.

Um carro e uma bicicleta se aproximam, diminuindo a velocidade ao ver que um homem, no meio da rua, bem abaixo daquele portal, cambaleia vagarosamente com uma garrava vazia numa mão, enquanto a outra gesticula como se enfrentasse um interlocutor invisível.

Uma jaqueta de couro (sintético, talvez), não mais que suficiente pro frio moderado que havia descido naquela noite - e cabelo com corte militar, nada distinto da moda masculina dominante, dão inespecificidade de classe àquela figura, enquanto a cor da pele, os traços do rosto e a barba lhe sugerem uma que adere a um estereótipo étnico particular.

Ele arremessa no chão a garrafa de vidro vazia, que se estilhaça, ao tempo em que a mão articula uma performance conclusiva seguida ao gesto do arremesso, como que para declarar a intencionalidade inescusável do gesto; como se arremessasse um coquetel molotov preparado em uma garrafa de Sternburg

O vidro que quebra ao tocar o chão é um anúncio hostil; um aviso aos que passam; uma nota em lembrança aos que vierem depois e puderem testemunhar da cena apenas os estilhaços no chão, a servirem de obstáculo menor a qualquer um que por cima deles caminhe com pés ou com rodas. 

Mas o que se anuncia ali exatamente? 

Seria o inconveniente da ausência do líquido, bebido minutos antes pelo homem em posse da garrafa agora vazia? 

Como se tivesse culpa a garrafa e sua dureza exposta no impacto contra o chão fosse ao mesmo tempo punição sentenciada e uma declaração de sua inutilidade atual... 

Ou a agressão se dirigisse ao asfalto, representante basilar de um sistema costurado ao redor das grandes estruturas de concreto a volta, porque fosse o homem com a garrafa vazia uma vítima agora consciente de todo campo de determinação ao qual foi submetido e feito chegar ali, naquele instante, em seu momento de lástima? 

Como que negligenciado, naquela noite fria, enquanto outros repousassem suas enormes canecas de vidro sobre um porta-copos em cuja estampa se poderia ler uma mensagem clamando por desobidiência civil de qualquer espécie. Ainda que do modo banksiano do de um arremessador de coquetéis molotov imaginário...   

Tivesse, quem naquele instante se confronta com essa questão, acesso ao conteúdo privado do sujeito objeto de sua atenção, saberia a razão particular daquela atitude: quem sabe, um dia ruim, uma insatisfação espontânea, um coração partido... Pois um sujeito, quem quer que seja, contém bem mais que os estreitos frames das minhas especulações observacionais.

Os outros a volta fazem silêncio por um instante ao ouvir a garrafa estourar no chão. A violência performada tem sempre um público em vista. Sua materialidade consequente conserva o príncipio dos olhos atentos que a tiveram como testemunha, ainda que sejam olhos apenas imaginados por um autor embreagado ou fora de si. 

A garrafa é um acessório cenográfico por natureza. Melhor ainda: é um instrumento, porque potencializa a ação de quem a maneja numa descarga convulsiva de texturas e sons que, como a música de uma tradição celebrada, tem objetivo e significado.

Mas a cena fica para trás. Enquanto cavalga em sua bicicleta, um observador de detalhes deixará para trás também a memória do indivíduo arremessador de garrafas. 

A alguns metros dali, ao atravessar a ponte sobre o canal de defesa (Landwehrkanal), os estilhaços de vidro que se multiplicam ao redor e a frente - como "cenas de crime" não marcadas - evocarão, todos eles, uma cena vaga em que o sujeito, agora ausente, expressa hostilidade similar àquela do arremessador da primeira garrafa.

Serão apenas alguns minutos até que esse observador consciente tenha ele mesmo uma garrafa em mãos, da qual se alimenta ou alimenta uma embriaguez qualquer (de anestesia ou excitação) e para qual devotará a atenção que se devota a um texto poético ou uma peça de publicidade. 

Possivelmente, apoiará a garrafa, então vazia, em um muro à vista, ou num canto descoberto, para que seja tomada em mãos por outro, que fará uso dela conforme a cidade lhe defina um papel e um comportamento à caráter.

Os corações partidos, no entanto, permanecerão ocultos nos peitos de seus hospedeiros respectivos.

Mas, como a garrafa, trazem também eles nas suas formas um conteúdo a ser descrito, contendo e transferido seus líquidos - e suas mensagens - do mesmo modo que os corpos que os carregam.


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