A van pára e a
porta se abre, deslizando como um pedaço inerte de matéria sendo
movido por um dispositivo autômato qualquer, uma mulher de mãos
dadas com uma criança - de, talvez, 6 anos de idade – segura a
mochila do filho pela alça, enquanto projeta a criança para dentro
da van, oferecendo o impulso necessário para que o pequeno
ultrapasse o obstáculo que é a alta soleira do veículo para as
suas reduzidas dimensões. Depois de concluída essa ação, pede ao
menino que se segure enquanto coloca a mochila também lá dentro. O
próximo passo é subir ela mesma, com as dificuldades que seu peso
corporal, aparentemente, impõe. Apesar do esforço, ela tem êxito
na tarefa e agora procura um lugar para si e para o filho, quando
ouve, vindo de trás do veículo, uma voz carregada de intimidade se
dirigindo a ela:
- Dona Neuza! O que
tá fazendo a essa hora na rua?! Fazendo hora extra – Diz o homem,
provavelmente, em referência ao horário em questão, algumas poucas
horas depois do final do chamado expediente comercial.
A mulher identifica
imediatamente um assento e dirige a ele o seu filho, antes mesmo de
responder ao senhor que lhe teve a palavra. Ele sentado, ela devolve:
“Minha hora extra é essa aqui!” - enquanto sacode levemente o
menino pelo pulso, fazendo dele ao mesmo tempo seu protegido e objeto
da conversa que tem em mente. Mas o menino é já suficientemente
perspicaz para entender do que se trata e reage, sem nem ser
convidado na conversa: “Sou hora extra não! Sou filho!”
A mãe ironiza a
fala do menor, pouco versado nas paródias sociais da qual ela toma
parte: “É filho?! Filho de quem?! Do seu pai?” - o garoto
permanece silente, sem resposta, enquanto ela completa – "Só se for
filho dele mesmo, porque pra mim você só dá trabalho.”
O menino fecha a
cara e faz bico, sem argumentos para defender sua própria condição
de produto de uma cadeia familiar específica, enquanto a mulher se
desvia dele e retoma a conversa que se havia iniciado com o senhor no
fundo.
- Hora extra que
nada! O patrão perde os dedos pra não dar hora extra, seu Walter. -
se refere ela ao fato do custo de um tal expediente não ser
vantajoso para o seu empregador, mas também deixando emergir da sua
fala um julgamento da personalidade do homem em questão - ganancioso
a tal ponto que entregaria falanges e metacarpos para não se ver
estreitado pelas margens nos seus preciosos rendimentos.
- É, dona Neuza...
Se não tá fácil pra eles, imagina pra nós. - diz seu Walter,
sempre com um toque de irreverência na voz, como quem pratica alguma
intencionada política de coleguismo, mas sem deixar de mencionar que
existe no enredo um “nós” e um “eles”, porque é, afinal, um
senso particular de identidade que media sua relação amena com a
mulher em diálogo e, porque, o outro é quase sempre, por alguma
razão, aquele que os expõe a uma situação de transporte como
aquela, que se não é a pior possível, tampouco é de algum modo agradável.
“Não tá fácil
pra eles?!” - ela questiona a fala do homem - “Que isso, seu
Walter?! O senhor já ouviu reclamação de patrão? - e completou
como quem muito antes já houvesse domesticado a resposta -
“Reclamação de patrão é sempre coisa pouca e bobagem.”
E arracou do “velho”
umas boas risadas que, de tão honestas, contagiaram a mulher e
provocaram sorrisos coadjuvantes à volta. Pois, riram os dois
sonoramente e por alguns segundos mais e quando cessaram, foram
imediatamente capturados pelo rosto enfurecido do menino que, a um só
tempo decidido e atrapalhado em continência do choro iminente,
falava alto, gritava quase: “João! João! Meu nome é joão e eu
sou filho! Hora extra o caramba!”
Teriam todos
gargalhado por horas a fio não fosse o cansaço do dia acumulado e a
obrigação de, em algum momento, retirar o dinheiro do bolso e
entregá-lo ao motorista.
Dinheiro na mão e
um rosto sério e esse é o retrato final. Pois nem dona Neuza, nem
seu Walter têm de sobra tempo, nem ânimo pra fazer da história
contada uma “crônica bem humorada”, como o seu condutor
gostaria.