Sentado numa mesa lateral em um café
esperando alguém. Vira-se para o garçon e pede um capuccino.
Retorna, em seguida, a si, com olhar baixo, e inicia consigo mesmo o
diálogo, em silêncio:
Como começar uma conversa com um amigo
que não se vê há tempos? Pergunto pela família? Eu soube que ele
se divorciou da mulher e, em algum lugar da memória, encontro a vaga
menção a um filho doente.. leucemia, caxumba? Não tenho certeza
agora. Talvez seja melhor não fazer referência a família e,
para não pagar de deseducado, lançar um comentário na iminência
da despedida; algo como: “espero que esteja tudo bem com a
família”. Assim, evito as complicações do assunto e ao mesmo
tempo faço menção a estes outros indeterminados, com boa fé
cristã e simpatia moderada - desobrigando-o, de qualquer modo, de
uma resposta provavelmente inoportuna. Posso perguntar sobre o
trabalho. Não, isso não! Nesses tempos de crise, paira sempre a
possibilidade de se estar desempregado. Além disso, estamos em uma
idade em que, se não é a crise econômica a nos chicotear, uma
crise interna vem nos dizer com frequência da insignificância e
inutilidade social daquilo que fazemos no exercício da profissão
(certa vez conheci um perfumista: e a lembrança certamente vale para ilustrar o caso). Responder-me-ia
com pesar no primeiro caso e provavelmente evasivo no segundo.
Ninguém aprecia, de fato, a ideia de desabafar as próprias
frustrações e fracassos com o amigo eventual, dos encontros
bienais quando muito. Aliás, pra tais frustrações o melhor amigo
é o próprio ego, que não nos poupa por comiseração as suas
verdades, mas, fazendo-o em silêncio, assegura-nos ao menos a imensa
vantagem da discrição. De uma forma ou de outra, perguntar-lhe a
essa altura sobre o trabalho teria sido um tiro no pé - e entre um
tiro no pé e um na cabeça, difícil escolher o pior. Há quem
valorize mais a vida que o orgulho próprio, mas vergonha é uma
senda que não se ultrapassa sem algum dano maior permanente. É
preciso iniciar a conversa com leveza, sob o risco sempre iminente de
tornar-se o diálogo e, por consequência, o encontro, um fardo - tão
logo se perceba não haver ali afinidade imediata. Nesse caso, o
convite para o café teria sido um equívoco.
Nesse momento, abre-se a porta do café
e a atenção do homem foge de seus pensamentos consigo e vaga até o
senhor que agora caminha em sua direção. Alto, magro e barbado de
uma orelha a outra, vestido casualmente, com calça jeans e camisa de
flanela xadrez sobre uma camiseta branca sem estampa. Ele, então,
passa pela sua mesa e mais duas, e vai sentar-se junto a um grupo
onde dois outros já estavam, em uma cena de pratos e copos quase
vazios, a não ser pelo resíduo visível de suas refeições em
consumo.
Em sua própria mesa, o garçon acabara
de repousar o pires e a xícara. Ele apoia a visão na espuma
esbranquiçada sobre o líquido marrom, do qual um faixo estreito de
vapor sobe continuamente, dando nota provável em respeito a
temperatura da bebida. Ele agradece olhando para o garçon e devolve
o olhar à xícara, liberando novamente sua atenção para os seus
pensamentos:
Podemos pular já de cara para temas
dinâmicos e atuais como política ou economia? Eu li esses dias que
o presidente seria indiciado por corrupção passiva. Se ele esta a
par da notícia, certamente terá jà formado uma opinião qualquer a
respeito – e se há algo que as pessoas dispensam gratuitamente e
aparentemente ao menos com algum prazer de uma forma ou de outra
declarado são suas opiniões sobre o caráter do outro. Se ele,
todavia, a desconhece, talvez sinta-se constrangido pela ignorância
presumida sobre os acontecimentos do próprio país. Por isso mesmo,
respaldamos os jornais para a função das notícias. De outro modo,
pareceria sempre nos querer esfregar na cara o conhecimento
antecipado dos fatos um amigo que nos viesse contar dos
acontecimentos políticos últimos. Aos jornalistas, em todo caso, colocamos à disposição uma reserva tal sob a justificativa de que são eles pagos exatamente para isso. Afinal, política é um terreno
conflituoso que se deve evitar quando se desconhece as posições
mais gerais do seu interlocutor e sempre tendo em vista o risco da
ignorância política do seu eventual interlocutor emergir como tal. Afinal, quem é mesmo que gosta de ser chamado de ignorante ainda quando da adjetivação apenas insinuada?
Ele alcança um sachê de açúcar no
centro da mesa, segura-o na ponta dos dedos indicador e polegar e
bate delicadamente com o dedo médio da outra mão, assentando o
açúcar na base do envelope e liberando alguns milímetros de espaço
no topo, justamente onde ele posiciona os polegares e indicadores das
duas mãos, rasgando o recipiente de papel e dando passagem ao
granulado, que ele quase imediatamente despeja sobre o café. Repete
o gesto mais duas vezes e com uma pequena espátula de plástico, a
disposição na mesa, bem ao lado dos sachês, faz circular o café
dentro da xícara durante mais ou menos 12 segundos.
Devo evitar iniciar a conversa chamando
atenção para a minha pessoa, mas nada me impede de deixar espaço
para que ele mesmo inicie a conversa. Mas assim sendo, eu pareceria,
talvez, omisso e desinteressado. Fui eu mesmo quem fiz o convite, de
todo modo, devo assumir a responsabilidade de dar o pontapé inicial,
ao menos. Aliás, seria de bom tom oferecer-me para pagar a conta.
Parece que essa é uma implicação instituída do convite, que
invariavelmente pesa sobre o... falta-me agora a palavra disponível
na língua para nomear aquele que convida. “Convidador” parece
morfologicamente adequado, mas soa como uma arbitrariedade sem
tamanho. “Convitante” não soa tão mal. Duvido que exista na
língua portuguesa, mas talvez funcione em italiano... quem sabe? O
caso é que eu preciso articular com algum bom senso um inicio de
conversa que ofereça à ocasião alguma possibilidade de
desdobramento. Tendo cumprido esta etapa, é provável que a conversa
tome seu próprio rumo, como geralmente tomam as conversas. Não
sendo o rumo deliberado de uma singularidade vinda de um ou de outro,
mas o meio termo entre interesses e opiniões dos envolvidos. E se
não interesses e opiniões reais, ao menos de um senso social
qualquer que espreita inexplicavelmente nessas criaturas que circulam
pela cidade, abordando e sendo abordadas umas pelas outras. Já ouvi
chamarem a isso de “presença de espírito”, mas não estou certo
de que a expressão valha exatamente para essa capacidade notável de
dizer com frequência a coisa certa entre as várias coisas erradas
possíveis. Afinal, a cabeça é um universo inteiro de coisas que na
linguagem se coagulam, quando justamente abandonam a abstração das
sensações, sentimentos e outras imagens disformes – que a própria
linguagem encontra dificuldades em designar mesmo que imprecisamente
– e se inauguram como possibilidades reais. Cumpre que dentre essas
tantas coisas que constituem um tal universo, apenas algumas poucas
são as “coisas certas” a dizer em ocasiões determinadas, do que
se infere que a estatística deveria estar imensamente a favor das
“coisas erradas”, ou ao menos das coisas outras que, não sendo as "erradas",
definitivamente também não são as “certas”. Eis que essa capacidade
individual se instila no corpo e na mente das criaturas sociais mais
diversas, fazendo equilibrar a estatística e tornando possível,
talvez mesmo provável, que as pessoas se relacionem umas com as
outras. Por isso mesmo, preciso eu iniciar essa conversa de forma
apropriada. Sob a mácula de um começo ruim, pode todo o diálogo se
perder num abismo interminável de proposições suspeitas ou mesmo
enunciações sem propósito. Quando perguntado sobre o simbolismo
presente na imagem de um anúncio publicitário, um homem de pouca
instrução formal, digamos um pescador, por exemplo, humilde que
seja em seu reconhecimento de si num mundo de coisas tão diversas
quanto o átomo e uma música de George Michael, ou quanto a teoria
da relatividade geral e um espremedor de alho, concluirá de seu
interlocutor que, se não é louco, ao menos falta-lhe alguma peça
na engrenagem que condiciona atividades sociais em geral. Do mesmo
modo que, quando perguntado sobre o preço da gasolina, o filósofo
mais habilidoso se encontrará numa situação desgostosa, perturbado
e indeciso entre o sentido imediatamente prático da pergunta,
direcionada a ele como usuário em potencial de um automóvel e as
implicações teóricas do problema do valor abstrato, se deslocando
entre noções como as de valor de uso, valor de troca, etc. Talvez,
por isso, seja tão comum ouvir-se sobre assuntos como o clima, que
independentemente da situação social dos envolvidos num diálogo
qualquer, afeta-os diretamente e podem eles dar, senão uma opinião
cientificamente fundamentada, ao menos um relato qualquer sobre sua
experiência direta com ele. O homem de casaco dirá, provavelmente,
que faz frio, enquanto o de camiseta que o tempo é fresco ou que
sente algum calor. Pode ser que os dois concordem e por um segundo se
identifiquem por meio de uma sensação comum, tremendo debaixo das
próprias roupas ou enxugando ininterruptamente o suor que desce da
testa, mas o caso é que podem compreender do que se trata e quem
sabe até destilar dali alguma empatia mesmo que a opinião do outro
seja diametralmente diversa da sua. Certo é que se irá ali
encontrar comunicação válida e não precisarão nenhum dos
envolvidos especular sobre a sanidade do outro - ou da falta dela. No
meu caso, no entanto, o assunto não se justifica. O convite feito ao
amigo de longa data, mas com o qual, por circunstância qualquer, não
me engajo em diálogo há tempo considerável, requer que haja mais
trato no expediente das primeiras palavras.
Ocorre-me agora que eu poderia muito
bem ter feito uma pesquisa na rede. Certamente encontraria ali uma
lista infindável de assuntos possíveis e apropriados para uma
ocasião como esta. É certo que essa ocasião em questão possui
suas particularidades, quais sejam as dos dois indivíduos que estão
prestes a se engajar em diálogo, cada qual com as singularidades
medidas de sua experiência de vida e, além disso, os termos
estabelecidos de sua relação um com o outro, que manual algum
poderia antecipar. Mas é provável que ao menos um bem intencionado
qualquer teórico já se tenha ocupado de analisar, a partir de
estudos de caso oportunos e das generalizações consequentes
necessárias, conversas e situações sociais análogas, nas diversas
esferas da vida moderna e entre elementos ocupantes de posições
particulares em situações análogas, considerando questões
contextuais como hierarquia, idade, gênero, etc. Mas esse insight
agora de pouco me serve. Uma investida metalinguística como essa,
colocando em pauta minha própria dificuldade em iniciar a conversa,
soaria a ele como uma menção intencional a distância que nos
separa, quando o diálogo pede justamente - nos termos de sua própria
natureza e propósito - uma conexão em vista. Aquele que inicia uma
conversa tem em mente, em geral, uma inclinação a associação com
o outro, ou ao menos o apelo a uma reciprocidade qualquer. Não fosse
isso, contentar-se-ia com sua fala resultando em uma ofensa ou no
estandarte de uma fantasia determinada com a qual se faça
identificá-lo com o público a volta, mediante um julgamento
imediato sobre as palavras ditas, mas sem a continuidade explicativa
do diálogo, como quando um entrevistado dando suas palavras como resposta ao entrevistador, oferece-a ao público sem muito se preocupar com o que irá pensar dela o próprio entrevistador. Nos dois casos, não haveria conversa.
Levantou a xícara, trazendo-a
lentamente até a boca. Já não havia vapor aparente. Virou tudo de
uma golada só e repousou a xícara novamente na mesa. Catou um
guardanapo entre os muitos que se enfileiravam no mesmo recipiente de madeira que mantinha os envelopes de açúcar e as pequenas
espátulas de plástico juntos, e esfregou-o nos lábios e ao redor.
Dobrou-o em duas partes e repetiu, colocando na mesa o guardanapo
sujo após a ação concluída.
Olhou a volta e percebeu que a
disposição das pessoas no recinto havia mudado. O grupo que antes
ocupava a mesa atrás de duas outras em relação a sua não estava
mais lá. No seu lugar, um casal de idosos conversava discretamente,
enquanto gesticulavam os dois funcionalmente sobre as xícaras diante
de si, cada qual investido em sua relação própria com a bebida que
tinha a frente, e a conversa fluía entre a atenção dirigida ao
outro e a atenção dirigida a bebida, sem que um ou outro
apresentasse empecilho algum ao fenômeno que entre eles se
desenrolava.
Retornou a si sem, no entanto, tirar os
olhos do casal:
A intimidade torna tudo mais fácil.
Relações que, sem ela, de outro modo, improváveis seriam,
revestem-se de uma naturalidade análoga àquela dos vegetais que
crescem no campo. A intimidade - seja lá o que for que a palavra
signifique – não apenas predispõe ao diálogo todos os enredados
por essa força incomensurável que paira entre os animais mais
diversos, como parece reembaralhar todos os elementos inteligíveis
de uma situação de diálogo, redimensionando em proporção
vantajosa para ambas as partes as “coisas certas” com relação a
todas as outras, isto é, um indivíduo que se encontre em diálogo
com alguém de quem é íntimo terá maior probabilidade de que as
coisas que diga sejam as “coisas certas”, quaisquer que sejam
elas, na medida mesma da sua intimidade com aquele com quem dialoga.
Imagino o questionamento feito sobre a sanidade ou a inteligência de
seu esposo, quando após 35 anos de uma relação diária e estável,
sentados à mesa de jantar, ele diz a ela: “Me bateu uma imensa vontade de lamber o pús da ferida de um cachorro!”. Ainda assim,
por mais improvável e mesmo repugnante que sejam as palavras em
questão, o choque e a surpresa terão dado lugar ao abandono dos
pormenores semânticos em favor da familiaridade com aquela voz.
Possível até mesmo, aliás, que possam ficar confortáveis em
silêncio um em frente ao outro, desde que a intimidade entre eles
seja assim colossal. Numa situação como essa, no entanto, um observador
externo terá mesmo dificuldade em precisar se aquilo que testemunha
é fruto de intimidade tamanha ou da completa indiferença. E
desconfio que seja justamente a intimidade que desenvolvem os homens
consigo mesmos que os permite ficar em silêncio com seus próprios
pensamentos, porque neles a intimidade com as ideias e os sentimentos
que circulam dentro de si não prescreve outra atitude senão a
simples e manifesta indiferença para com estes. Provavelmente, a
mesma que emerge dentro de nós diante de uma notícia já conhecida
ou de uma piada velha. E quem de nós já não se encontrou
moderadamente surpreso com os próprios pensamentos? Se me deixo
correr a revelia do tema e do propósito, por exemplo, me encontro com toda sorte
de pensamentos: Um urso usando chapéu, uma máquina-de-lavar
segurando um sorvete de casquinha, um número quase infinito de
palavras-imagens enfileiradas em frente a um balcão, aguardando seu
momento de estréia... Há, inclusive, quem encontre na intimidade o
segredo de todas as coisas. A perpétua lei dos Hindus, a consciência
espiritual como intimidade plena com o mundo, a intimidade do ser com
todas as coisas, vivas e não vivas, entoada numa só palavra que se
repete através da linguagem dos homens, dos ventos, dos rios. É,
afinal, a intimidade com certa música que nos projeta a um estado de
divertimento irrefletido quando repetimos, palavra por palavra, a
letra e a melodia de uma canção conhecida. Ou, na sua forma mais
frequentemente descrita, o acolhimento incondicional da família.
Muitas vezes me perguntei se o amor em todo canto idealizado entre
mãe e filho não seria apenas uma variação particular dos modos de
intimidade possível entre duas pessoas.
Mas isso tampouco me ajuda. Intimidade
é coisa que com ele não tenho e que, de outro modo, requer uma
situação favorável para brotar. Situação essa que eu
provavelmente não terei se não dispuser de um começo de conversa
ao menos adequado. Talvez se eu evocar um tema da história - tão
distante no tempo quanto possível, que retroceda às primeiras
dinastias egípcias, ou antes ainda, aos sumérios - eu possa
suscitar nele essa familiaridade objetiva, ainda que inexplicável
que nos faz reconhecermos homens entre homens mesmo quando diferimos
nos mais diversos aspectos da vida. Quem sabe se a distância que nos
separa não pareça assim tão relevante desde a perspectiva da
história das civilizações? Como se pudéssemos encontrar num tema
assim objetivado e de tal modo externo as nossas pequenas aventuras
pessoais, o terreno comum onde possam encontrar-se esses dois
universos distintos que povoam nossas cabeças, diante de uma
possibilidade real de comunicação; como uma pedra de Roseta ou uma
inscrição de Behistum dos nossos próprios idioletos... Ou do
contrário, se eu mencionar os investimentos em curso para tornar
possível a colonização de outros planetas? Se essa perspectiva
futura que a cada dia se revela menos improvável, não venha
desmentir também, quem sabe, a improbabilidade de nos encontrarmos
nós dois, de repente, em meio a uma conversa natural ou mesmo
agradável? Se, assim, o preço do combustível para foguetes não
seria um tema oportuno como outro qualquer, pedindo ao filósofo
dentro de nós a presença de espírito necessária para reconhecer o
sentido de cada palavra, objetivo como um comando remotamente
enviado. Se o nome Curiosity serviu
àquela criatura de poucos antecedentes sobre a superfície de Marte,
por que não nos poderíamos servir de um assunto tão genuinamente
humano para iniciarmos uma conversa em que a curiosidade seja,
afinal, um agente ou um reagente propulsor? Mas e, então, se ele se
questionasse sobre a impessoalidade do tema e nossa conversação
jamais conseguisse escapar ao âmbito dessas matérias gerais,
conquanto universais que sejam, e ele não pudesse evitar a absoluta
ausência de empatia, como aquela que experimentamos ao nos
relacionarmos com um manual de instruções ou a um dispositivo
didático qualquer? Ainda que Carlos e Maurício sejam criaturas
absolutamente idiossincráticas, ao discorrerem sobre um tema como
este, é possível que os dois reproduzam diálogo, senão idêntico,
ao menos possivelmente similar ao diálogo entabulado por Roberto e
Elaine sobre o mesmo tema. Aliás, raramente se vê o leitor de um
manual qualquer preocupado com a autoria daquele documento. Que
diferença faz saber quem é a pessoa que, do outro lado, nos diz que
não se deve separar o sujeito do verbo por meio de vírgula, esteja
já de antemão a sua autoridade instituída?
Ele emerge
novamente de seus pensamentos e estende o pescoço vasculhando ao
redor à procura do garçon. Levanta a mão assim que o avista e
aponta para xícara a sua frente enquanto articula a expressão “mais
um” com a boca, sem emitir sequer um som. O garçon acena
positivamente enquanto se dirige a uma outra mesa. Ele o observa
fixamente. Nesse momento sua cabeça está vazia, limita-se a
registrar a experiência visual para a qual se direcionam seus olhos.
O garçon se inclina diante da mesa onde duas mulheres na faixa de
seus quarenta anos descrevem a ele os seus pedidos. O garçon toma
nota e assim que retorna à cozinha, escapando ao seu campo
intencional de visão, ele baixa novamente a cabeça e aquele mundo
interior cheio de dúvidas novamente se abre:
E se
eu perguntar simplesmente “como vai a vida” ?! Deixo ao seu
critério o que é ou não de interesse dele expor a minha pessoa,
evitando assim colocá-lo em uma situação de constrangimento.
Mas e se ele reconhece da questão
formulada não o interesse genuíno nos aspectos gerais dessa
situação, de todo modo indeterminada, a que damos o nome de vida,
mas a proposição fática, simplesmente? Provável até que me
responda com um daqueles artifícios genéricos de redundância
verbal, como o já conhecido “vai indo”, e a imagem da vida que
vai uma vez mais e contínua, ininterruptamente, lançar-me-á num
desfiladeiro sem fim de questionamentos sobre essa vida que vai: Tem
ela um nome? Uma cor favorita? Prefere jazz ou samba? É a vida dele,
afinal. Um outro modo de descrevê-la seria, então, a coleção
absoluta das suas experiências de vida, dos seus impulsos biológicos
e da sua consciência imanente. Ainda que ele entenda a pergunta, nem
saberia por onde começar. Eu mesmo deveria questionar-me o interesse
diante do movimento de vida de pessoa tão ordinária.
“Com licença!” - interfere o
garçon: “Aqui seu capuccino” - e, com todo cuidado, apoia pires
e xícara na mesa e recolhe os já vazios. Ele permanece estático,
seu olhar não faz menção em ir ao encontro do rapaz, que após 3
segundos de constrangimento se retira, sem ouvir sequer um
“obrigado”.
Pessoa ordinária... Tantos
questionamentos e não tenho a perspectiva de encontrar nada além de
uma pessoa ordinária, isto é, uma pessoa quase como todas as
outras, ainda que das suas particularidades inalienáveis. Não somos
todos, afinal, pessoas ordinárias? Ou justifica-se mesmo essa
autoridade inexplicável das mídias públicas, que nos projetam a
imagem de um e outro, impondo a nós a ideia de que sejam estes
privilegiados pessoas inigualavelmente especiais. Ora, quão
ordinário seja ele, interessa é que eu o tenha convidado para um
café. Tendo convidado a ele especificamente, e não esperando neste
momento nenhuma outra pessoa que não seja o convidado, há que se
reconhecer ao menos um desvio circunstancial na ordinariedade que
obnubila a personalidade de figura alguma indeterminada.
Nesse instante, um barulho contínuo,
agudo e grave ao mesmo tempo, ressoa e ganha volume; as janelas do
estabelecimento tremem; a vibração se intensifica a cada centésimo
de segundo e, então, a atenção de todos ali parece voltada para
uma resolução iminente: As paredes começam, em seguida, a tremer
também - e o barulho, a essa altura, é já ensurdecedor; pequenos
pedaços do teto se desprendem e caem quase ao mesmo tempo em que se
pode reconhecer o som de um objeto gigantesco de metal impactando na
estrutura do edifício. O homem se levanta e vê, como que em câmera
lenta, o bico de um jato atravessando o teto e vir varrendo tudo à sua frente. O pequeno aeroplano cruza
toda a extensão da loja, deixando um canal de desolamento entre a
mesa do homem e a cozinha do lugar, agora abertamente exposta ao
público, com paredes tombadas e o balcão a frente delas tendo sido
carregado pelo avião. Curiosamente, apesar de algumas janelas
rachadas, a estrutura atrás dele permanece de pé e, com ela, a
porta de entrada, por onde agora entra um homem baixo, calvo e
casualmente vestido, com jaqueta jeans e calça preta, e uma camiseta
na qual a estampa chama menos atenção que a marca de uma barriga
saliente pressionando para frente o tecido. Ele reconhece o amigo e
acena. O homem à espera, que já estava de pé, dá um passo a
frente para receber o amigo e estende-lhe a mão, oferecendo-a em
aperto.
Tudo bem?
Tudo bem. E contigo?
Tudo bem.
Cessam, então, o aperto de mão e,
enquanto um se prepara para voltar a seu assento, o outro,
recém-chegado, põe as duas mãos na cintura e olha para o cenário.
Cerra os olhos, esforçando-se para reconhecer em detalhes a imagem
que tem em vista. Suspira. Olha para o chão, de um lado ao outro, e
levanta novamente a cabeça, retornando o olhar frontal que parece se
escorar no interior da cozinha à sua frente. Retornando, em seguida,
o olhar para o amigo:
Vamos a outro lugar? Eu pretendia comer
algo, mas fiquei um pouco frustrado com o que vejo dessa cozinha.
Os dois saem pela porta. O segundo
capuccino permanece na mesa... intocado. Ao redor daquelas tantas
ideias sobre mutualidade e a natureza associativa do diálogo, a
conta não paga parece apenas detalhe que não deveria valer nem a
pena mencionar.
O jato era um Citation Mustang 510 da
CESSNA. Não havia passageiros a bordo, mas é provável que o piloto
tenha morrido.