quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Aquele era um escritor cansado da poesia. Cansado dos lirismos e da música que invadiam as letras e faziam o leitor desarmado esquecer que era a vida real aquilo que lia; que era seca, amargurante a notícia e que, repleta das futilidades, faziam-no uma vez mais virar os olhos para o sem importância ou o insignificante. Aliás, quando foi que a poesia descreveu tão bem a realidade, que fosse possível vê-las ao mesmo tempo, uma na outra, poesia e realidade? Seguindo essa pergunta sem resposta, ele definia agora, para ele mesmo, que nenhuma outra forma de escrita estaria justificada que não o grafismo da literalidade que o impendia no peito e nos olhos, diante de si no mundo; assim também seria no papel a sua frente, pois tudo o que, a partir dali, escrevesse, seria como os gritos de um animal em sacrifício, falando sua dor diretamente aos ouvidos presentes, pedindo clemência ao seu executor; ou como fotografias frontais de rosto em 3 por 4 dando como prova de existência de um rosto nada mais do que aquilo essencial; ou, ainda, como as pinturas de Lascaux, representações tão reais que o homem moderno não pôde enxergar nelas o computo de um pensamento inventivo ou a falácia de ficção mitológica alguma.

Sua primeira noticia estava ali, diante de si, crua como deveria ser a sua própria linguagem e assim ele seguia dando nota ao caso de um acidente que deixara orfã uma menina de 9 anos, quando a mãe, de quem dependia seu sustento e criação, morreu tragicamente eletrecutada por um cabo de alta tensão partido e mergulhado numa poça d´água no caminho da pobre mulher.

Teria continuado a descrição da notícia e concluído a nota de falecimento se não houvesse entrado em êcstase após ler aquelas duas palavras que apareceram em seu texto, retumbantes; ao mesmo tempo infâmes e plenas de vigor estético. A história que seguia curso nos fatos não tinha, para ele, ali, o sabor e a medida, inconciliáveis, daquela expressão de costume: “morreu tragicamente”. Haveria se sentido culpado por se prestar a uma experiência estética tal como aquela, não fosse a contradição tão absurda das palavras, que deveriam dar o tom brutal de terror, serem justamente aquelas que davam beleza mais viva ao texto.

Percebeu que seria um jornalista desumano se desse destaque aquelas duas palavras, deixando como pano de fundo o desamparo da menina cuja mãe havia acabado de falecer. Mas ao esteta, a notícia era em si apenas um adorno protocolar, um melisma costumeiro, pois era o efeito sonoro daquela expressão que fazia seu texto ecoar por trás dos olhos de quem lia.

Concluiu sua obra, então, com um título que dava novo sentido aquele texto conciso que ele recortou delicadamente da notícia lançada, agora, à gaveta – e assim ficou eternizada sua obra, na forma de uma crônica melancólica ou poesia incisiva, conforme a disposição e a psicologia particular de quem lesse:

“Vítima de um encanto fatídico: Morreu tragicamente.”


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