Depois da tempestade, o
precipício.
Assim descrevia o
sentimento que o ocupava logo após cessarem os entusiasmos que o
haviam impulsionado durante todo o carnaval. Quando aquela alegria
incontornável, catártica, desproporcionada, não habitava mais seu
peito e no lugar deixava apenas espaço; uma cavidade profunda que
pedia tão somente ocupação imediata.
Perguntava-se sobre si
mesmo, sobre a natureza do gozo carnavalesco que se dispunha pulsante em seu corpo
minutos antes, e que ainda agora pulsava em outros corpos, os quais podia ele nesse momento observar, não sem alguma inveja, mas, sobretudo, com a indiferença de quem olha fixo um retrato e sabe que não se trata de nenhum espelho. Os primeiros raios de luz do dia, no entanto, ofereciam clareza e um brilho singular ao cenário do qual se retirava ele agora, e era justamente entre a indiferença e a inveja que se alternavam um movimento decidido de evasão e um reflexo auto-projetado de si na imagem da qual ele já não devia mais fazer parte. Quando cessava o brilho, porque não incidisse a luz num certo instante diretamente, restava apenas a clareza diurna através da qual se revelavam as imperfeições das máscaras
customizadas, as costuras expostas das fantasias mais minuciosamente
fabricadas, o desajuste dos elaboradíssimos chapéus nas cabeças cambaleantes por folga ou estreiteza da sua abertura em relação a cabeça que a vestia, o cansaço ardente no rosto da menina ainda impregnada
pela festa, pela dança e pelos desejos seus ocultos – quaisquer
que fossem.
Pois na exposição tão crua dos artifícios e ficções que imantavam aquela festa de um ar característico de fábula é que nascia a percepção de seu fim - já quando fim e percepção do fim eram uma e a mesma sentença. E como todas as coisas que são, apenas quando e conforme são, também o carnaval se presta a essa dinâmica particular em que toda a descrição é fantasia, porque quando se descreve, já não é; e quando chega de fato ao final é já outra coisa – e antes dela apenas um campo de possibilidades que a memória articula como quem maneja um álbum de fotografias.
Pois na exposição tão crua dos artifícios e ficções que imantavam aquela festa de um ar característico de fábula é que nascia a percepção de seu fim - já quando fim e percepção do fim eram uma e a mesma sentença. E como todas as coisas que são, apenas quando e conforme são, também o carnaval se presta a essa dinâmica particular em que toda a descrição é fantasia, porque quando se descreve, já não é; e quando chega de fato ao final é já outra coisa – e antes dela apenas um campo de possibilidades que a memória articula como quem maneja um álbum de fotografias.
Precisou afastar-se
daquela gente, pois da diáfana compreensão de que já não fazia
parte do instante. Quis mesmo acreditar que seu caminho seguiria, a partir dali, sua vontade e tão somente a sua vontade, mas não podia ignorar
a sensação de que fora deixado de lado, excluído quando
prontamente deixara de ser um deles para tornar-se outra coisa. A
agitação dos corpos em sincronia deu lugar à marcha individual, e
onde se contorcia o desejo incontrolável de mexer-se, refração do
contágio festivo a que dá nome o carnaval, insinuava-se agora
apenas o aspecto funcional do movimento pendular que leva de um lugar
ao outro por mera necessidade e ocasião.
Pelo caminho, no
entanto, a memória seguia ativa e capturava com participação
diligente cada figura que iria compor esse retrato do encerramento.
O encantamento residual de uma mágica que depende das proezas do
corpo – "o corpo que agora falha", dizia a legenda.
Havia aqueles ainda
excitados, mas nesse momento estes serviam já apenas de moldura para
a pintura que descreviam os ânimos em declínio. Afinal, não se
tratava de uma descrição pictórica qualquer do carnaval, mas sobre
o seu fim. E quanto mais afastavam-se o som dos surdos e das caixas,
das vozes e dos metais, mais protagonizavam o espaço vazio e os
dejetos de orgias sem nome; e conforme os resquícios da festa em
movimento desapareciam no silêncio da rua, a melancolia do trajeto
dava lugar ao desespero e a ansiedade pela chegada ao destino.
Sentia-se, o ex-folião, cada vez mais abandonado por aquelas
milhares de pessoas à quem havia ele dado o melhor de si durante as
últimas horas da sua vida, mas sobre cujo pertencimento dizia
respeito apenas à sua memória e não às delas, provavelmente. Não
havia uma sequer alma ouvindo o apelo cantado em versos de marchas
sem rima daquele um que agora carregava sobre os ombros apenas sua
própria consciência - morada de uma personalidade irremediavelmente sóbria e solitária.
No chão, gradualmente,
apareciam os despejos casuais da massa e, de repente, despejos menos casuais:
Corpos humanos. Um, depois outro e mais outro. Cada um
deles carregava consigo o aspecto geral de uma condição que era para a consciência que os reconhecia inconciliável com a ideia do que deveriam ser corpos
humanos, posto que o termo, para esta, deveria descrever um contexto absolutamente diverso daquele exposto. Assim, não se pôde reconhecer, num primeiro instante, em nenhum deles, e ainda que o
cansaço lhe subisse pelo pescoço e lhe quisesse roubar todo o
movimento do corpo, não seria possível que fosse ele e seu corpo no
chão, porque nele perdurava, sem ressalvas, aquela estrutura construída ao longo de
seus alguns anos sob a alcunha de alguma dignidade, que exercia não
apenas com o corpo, mas com todo o arranjo dos gestos possíveis; que
se exibia não apenas nos olhos abertos, mas nas roupas, no cabelo e
nas unhas cortadas. Algum tratamento especialíssimo, percebia agora,
o havia dotado de um sentido e um patrimônio de si que pareciam de
todo ausentes naquelas figuras ali largadas; deitadas sobre o concreto
das calçadas ou mesmo entre o meio fio e a rua, como se a pele
acostumada estivesse a dureza particular daquele solo, como se
conforto fosse uma palavra sem ordem e de sentido perdido nas ilusões
de algum mercado que lhes era, sobretudo, alheio.
Mas os corpos em
exaustão ressaltavam uma nota particular em razão: eram seres humanos e,
aquela, a consequência dos seus excessos. Mas e os excessos daquele
que observava, por que levavam tão criteriosamente a consequências
diversas? Perguntou-se, finalmente, pois a honestidade era também
parte daquela estrutura chamada dignidade: “O que nos diferencia?”
E a resposta saltava-lhe aos olhos. Apenas entre o tecido das roupas
e a pele que estas cobriam, uma dezena de características separavam
aos olhos atentos os corpos estendidos ao chão daquele que caminhava
judicioso. A partir da pele e adentro, no entanto, muito pouco
devia-se encontrar que os diferenciasse - o sangue devia ser úmido e
vermelho como o dele, os órgãos cumpriam, provavelmente, funções similares às dos seus e os ossos deles mediam-se por dureza análoga a dos ossos que o mantinham naquele instante de pé. Seria, então, a química artificial que
incendiara aqueles corpos horas antes muito diversa da que nele ainda
corria, querendo se extinguir sobre um colchão macio em ambiente
silencioso e controlado ou da que corria no sangue dos outros que, ainda, atrás de si festejavam? Provavelmente. Como as vestes sobre o corpo
e o corte de cabelo, também por dentro um tratamento mais cuidadoso
e sofisticado, como as alegorias sobre a cabeça e penduradas ao
redor do pescoço, resultava o encerramento da festa de modo diverso
para aqueles e para aqueles outros ou para si. Assim, reconhecia-se no meio do
caminho entre os corpos estirados e os corpos ainda em festa, mas sem
poder identificar-se completamente nem com estes, nem com aqueles.
Quis ele, então, por
um instante, voltar a ser apenas mais um entre os que festejavam. Mas para isso, seria necessário
que deixasse de lado a consciência que agora determinava seu curso.
Talvez fosse apenas uma questão da circunstância ou da falta de
apelo. Quem sabe uma ocasião distinta não pudesse transpô-lo
daquele quadro desesperançoso de humanidade em questionamento e
projetá-lo novamente ao reino encantado dos foliões? Era certamente
o corpo em esvanecimento, contudo, que dava lugar a consciência
criteriosa e que também o alertava para o caso de que é
terrivelmente fácil julgar uma multidão, dizer-se um “eu” entre
os “eles”, sem ter acesso ao enredo individual e aos pensamentos,
ainda que de lucidez residual, que balançam com aqueles corpos em ecstase. Se lhe fosse permitido invadir a consciência privada de
cada um deles, certamente encontraria em um e outro disposição mais
aguerrida a reclamar contra aqueles privilégios, pois é também um
direito a eles garantido – e privilégio maior entre os privilégios
– reconhecer e questionar a dinâmica da história que produzia um tal contraste e desumanizava os corpos outros que agora pendiam
pelas sujas ruas. Mas como o seu acesso se limitava aquilo que lhe
proporcionavam seus olhos e ouvidos, podia apenas reconhecer a
alienação geral a tudo que não tinha o aspecto sumptuoso da
alegria e do prazer.
A sua consciência, no
entanto, pedia tão somente que terminasse a festa – e se
explicava: a grande e mais cruel capacidade humana é a de suportar
que haja corpos aos quais se entrega tamanho apreço, e outros que se
confundam no lixo dos resíduos carnavalescos. Porque são corpos
como esses os que se emprestam a função de cadáver quando ao invés
do carnaval traça-se um retrato medido da guerra.
O ex-folião se preparava, assim, para uma nova
festa, enquanto colhia o cenário a volta entre adjetivos descolados e
frases de efeito. A fantasia mais desatinada - costurava o estilo como num golpe coreografado de acomodada autocrítica - é ser
aquele que escreve; o que julga e condena, de um lado, e aproveita,
do outro, os deleites da posição que ora ocupa. E essa máscara
ostentosa que o narrador veste sobre seu rosto enquanto seus olhos
vasculham pela memória as cenas possíveis de uma crônica ensaiada
- e cheia das suas assertivas morais – disfarça tão bem seu
caráter sob um entulho de virtudes humanas quaisquer, que faz da
história contada seu próprio carnaval.