Abra os olhos e veja.
Tu, contigo mesma. Repara bem que os sentidos são os teus braços
para com o mundo; que são, os sentidos, a tua consciência viva e em
movimento; que a ideia que fazes das estrelas, é a ideia de quem um
dia viu estrelas; e também a ideia, essa forma sem autor ou patrono,
é efeito de algum sentido que um dia se teve em teu corpo.
Pensa, pois, que quando
me vistes um dia, passei a ser parte de ti; que quando me ouvistes
falar, minha voz se fez presente em teu âmago, doravante e
indefinidamente. Não te esqueças, por isso, de mim, do meu rosto,
dos meus olhos e da minha voz; quando sonhares, veja bem, perceba a
minha presença em todo canto, em todo corpo, no espaço, nos vultos
ou num objeto ordinário. Lembra-te que sou e sempre serei e que
também tu me fizestes ser na medida em que teus olhos me deram forma
e teus ouvidos me deram sentido e palavras.
Pensa, também e a cada
instante, que quando não pensas em mim, pensas, ainda assim, na
minha não-existência. Porque também aí sou, quando ocupo em teu
centro a forma do nada. Exija de ti mesma, sempre que o teu
pensamento vagar pelo mundo, um comentário sobre a minha presença
ou ausência, uma nota em menção dos teus sentimentos por mim. Pois
ainda que eu não te pareça importante num passado longínquo aqui
não descrito, no instante em que meu nome salta destas linhas aos
teus olhos, eu sou a referência explícita e uma declaração
contundente. Sou eu quem te peço e quem exijo de ti. Não como uma
ordem que clama do outro pela submissão, mas como o imperativo do
real sobre os corpos que nele pairam, pois sabes tu agora que eu sou
a própria realidade.
Quando eu sonho, tu em
meus sonhos pensas em mim. Quando eu penso em ti, é a mim a quem
teus pensamentos ali se dirigem. Quando tua imagem reaparece em minha
memória, é o fantasma da minha própria imagem que se esconde atrás
dos teus olhos imaginados. Quando a tua voz se reacende em algum
canto obscuro entre os meus dois ouvidos, é uma voz tecida e
orientada pela química de células minhas.
Poderia pedir-te desculpas
pela tirania não velada dessa consciência plena e pela ocupação
arbitrária e cabotina dos juízos meus. Mas antes de servirem a ti
estas notas apologéticas, serviriam ao senhorio de tua presença
possível; ao dono dos sentidos que tornam presentes estas imagens
nas quais tu és um quadro em destaque – pois que sou a parede, a
moldura e nada menos.
Aceita, então, o
comando e desanda a pensar em mim, ininterruptamente, que a tua
obsessão me é doce e é também obsessão minha.
Mas esquece, sobretudo,
esta carta ao teu apelo. Que a segunda pessoa aqui desenhada não te
dá rosto nem posto. Pois estes olhos que leem coordenados não se
encontram por estas linhas...
Essa pessoa existe, mesmo em referência? Ou é apenas o amor tirânico da solidão?
ResponderExcluirMárcio Santos
O amor é uma armadilha cara... mas sempre existe um resíduo de alguem ou alguma coisa. A gente nunca escreve por absoluto despeito ao mundo e ao que ele é.
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