Enquanto eu lia, sentado à cama, Pietra adentrara ao quarto e, sem nenhum constrangimento, perguntou-me:
- Você tá lendo?
Posso ler com você?
Chamei-a ao meu lado,
quando tomou das minhas mãos o livro e concluiu, já depois de
folhear as primeiras páginas:
- Não tem figura!
Curioso que no
vocabulário de uma criança de 4 anos, o verbo "ler" indique um
atividade tão lúdica e despropositada como a do simples folhear e
ver. A mancha textual, que esconde sob a uniformidade do todo mensagem muito mais rica e secreta, nada lhe diz. E por que deveria?
Ler sugere uma pesquisa mais meticulosa a partir do contraste
definido que as letras impõem sobre o fundo. Pede-se paciência e o
conhecimento prévio dos códigos, mas pede-se, sobretudo, que as
mãos, que folheiam, obedeçam ao vagar primeiro e ao caminho que traçam
os olhos sobre a superfície manchada. Consta que nas crianças dessa
idade, entretanto, é o manuseio e o frenesi da experiência do corpo
que comandam a prática que sua ingênua linguagem denomina, ainda,
“leitura”.
Retomei, então, o
livro de suas mãos, indicando não se tratar, como ela poderia haver
imaginado, de um livro para crianças. Curiosamente, todavia, e
porque o livro fizesse referência a imagens tornadas representativas
para a história da arte, trazia em seu miolo algumas páginas
destinadas a ilustrar tais referências. Parei, assim, numa página
em que se estampava a figura de um bisão, registro parietal dos
primórdios da consciência artística da humanidade, gravado na
gruta de Lascaux. Apontei para a imagem e lhe disse:
- Tá vendo? Essa é
uma das pinturas mais antigas, feita pelo homem, que se tem notícia.
- Que homem? -
perguntou ela.
- Não se sabe. Ela
é tão antiga que não se sabe o nome do homem ou da mulher que
pintou.
Desinteressada, fez
cara de quem pouco se importa se o registro em questão nos poderia
ajudar a compreender a atividade artística humana e impelida por
autoridade muito comum nas crianças de hoje, projetou a mão sobre
os meus braços, dando continuidade ela mesma a passagem das folhas
até parar-se em um desenho de Matisse intitulado “Artista e modelo
refletidas no espelho”. O vazio deixado por aqueles traços sutis e
instáveis, levaram-na a questionar:
- É pra colorir?
Desfazendo-me da
inclinação pedagógica e com receio de que ela pudesse, no futuro,
por-se a rabiscar alguns de meus livros, apressei-me em responder:
- Não, não é pra
colorir. Esse aqui é só pra olhar.
E porque, talvez, não
houvesse suficiente apelo restritivo naquelas palavras, completei:
- Os livros do
tio Bruno são todos pra olhar apenas, nenhum deles é pra colorir.
Olhar apenas, no
entanto, não a satisfez, no que se pôs ela, novamente, a virar as
páginas, interrompendo a passagem ao chegar em uma reprodução de
“Park bei Lu (Zern)” de Paul Klee. O dedo indicador dela lançou-se, imediatamente, e conduziu-se pelos grafismos caligráficos
de Klee como se os quisesse reforçar ou confirmá-los, indo de cima
abaixo e voltando pelos traçados labirínticos que ensejavam aquela
escrita enigmática e perguntou-me:
- É pra fazer os
caminhos?
A pedagogia do nosso
tempo parece conceder direitos plenos e autonomia irrestrita a
experiência corporal primeira. Acaba, assim, dando vazão, talvez
desmedida, a ansiedade potencial dessas crianças, entendendo-as como
“corpos curiosos” ou dispositivos motores prontos a se por em
participação física sempre que atividade intelectual alguma lhes é
requisitada. Como se nenhuma autoridade exterior pudesse-lhes fazer
cumprir a motivação necessária para uma atenção positiva e
determinada que sustentasse, desse modo, um aprendizado prodigioso e
rico em conteúdo. Seus problemas não parecem mais ser cognitivos,
mas motivacionais. Também a observação introspectiva - com
finalidade de projetar na criança um imaginário que lhe sirva de
cenário para os aprendizados futuros e a paciência devida à
contemplação meditativa, tão importante para a memória e o
desenvolvimento cognitivo - parece haver sido relegada ao título de
atividade entediante, chata e incapaz de resultar em estímulo ao
aprendizado.
Não é de estranhar
que boa parte da arte de nosso tempo evidencie essas mesmas
características, tratando seu público com o mesmo didatismo
motivacional que encontramos nos modelos pedagógicos mais modernos.
Alegando-se “propositiva”, convida-nos a participar menos com
nossos olhos e observação diligente e reflexiva que com a
prerrogativa de que a experiência deve nos entreter ou
fazer-nos sentir “inclusos” no processo, como se apenas essa redução literal da distância entre o público e a obra justificasse acesso ao seu conteúdo, forma e propósito. Pedem-nos que entremos em espaços
armados de artifícios e efeitos, que nossa presença em corpo seja o
imperativo de uma experiência de comunhão criativa, como se nos
fosse concedida margem criativa alguma nesses modelos e esquemas que
somos impelidos - senão obrigados - a seguir.
Há também os que,
segundo essa mesma disposição participativa, tenham se equivocado em contexto, à exemplo daquele famoso caso em
que um visitante marcara uma pintura de Miró, nas instalações do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, usando tinta e sua mão
como carimbo. Poderíamos imputar ao engano desse senhor ou senhora
apenas a ocasião de uma anacronia circunstancial uma vez que a
pintura em questão se havia concebido em época em que vigoravam
outros preceitos, não fosse o prejuízo material tão significativo. O caso é que não há experiência nenhuma que pague os dividendos de uma contemplação demorada e de corpo ausente; apenas "olhar por olhar" e ver no que se olha aquilo de que o corpo não é premissa; o distanciamento decisivo a partir do qual nos é admitido fazer parte da experiência apenas porque existimos e pensamos.
Cabe agora determinar,
de todo modo, se esse rancor para com a pedagogia hodierna é, de
fato, resultado da deslocalização temporal em que sugiro me
incluir, não como saudosista simplesmente, mas como convicto de que
o futuro não deve cindir com o passado apenas por conta de uma orientação sucessiva - que deve haver no passado modelos eficientes
como os que serviram a educação de tantos gênios (ou seria o caso
da nova orientação preocupar-se ainda mais com a premissa de não
educar gênios?) - ou se se trata apenas da preocupação excessiva
antecipada para o caso de meus amados livros aparecerem rabiscados e
coloridos, como se gênio nenhum nessas velhas almas e nesses
escritos fosse mais louvável que o gênio hiperativo de uma criança
com lápis de cor empunhado.
- É pra fazer os
caminhos? - Ela me perguntou, séria.
- É! Mas apenas com
os olhos e o pensamento.
Foi a resposta que eu
tive ao alcance.