terça-feira, 4 de setembro de 2012

O pintor de paredes


"Wir fühlen den Schmerz, aber nicht die Schmerzlosigkeit"
(Sentimos a dor, mas não a sua ausência)
Arthur  Schopenhauer



Fecho os meus olhos e outros dois olhos, de repente, aparecem diante mim; diante de meu peito ou ao meu redor; uma imagem que se espalha e contamina aos poucos o espaço de minha percepção; não são, no entanto, olhos de verdade o que vejo; e como poderia vê-los de olhos fechados? São olhos não porque “ser” lhes funde em alguma verdade, mas porque uma existência sutil lhes entrega o caráter de ‘coisa no mundo’. Olhos pintados por mãos invisíveis - a memória é uma artista tão delicada; detalhista, algumas vezes e outras, apenas delicada. Pois há esses momentos em que se apega somente ao essencial; desfaz o contorno preciso em forma que já não se quer definida; derrama sobre o espaço intangível entre os olhos e a alma a cor que dia houve visto em círculos e elipses em vida e movimento. Agora, no entanto, retém perene e objetivamente apenas seu nome: azul. Mas a palavra, somente, não faz jus aos olhos que dia estamparam essa cor; a mesma cor, talvez, que Agamenon um dia viu sobre o Egeu quando da sua investida em direção a Tróia. Mas também esses olhos, os do herói grego, não tem verdade que não seja apenas o reverberar de um sentido que dia fez nascer a palavra, ecoando através das vozes que se seguiram à voz de Homero ou nos palimpsestos gravados a custo de mãos que hoje já não mais pintam.

Abro meus olhos e aqueles olhos outros permanecem diante de mim sem dirigirem-se aos meus, pois sua imagem imprecisa não se delineia através da visão e nem é o sol quem a alumia; esse mesmo sol que um dia iluminou a visão que Galileu teve do azul num céu à luz do dia; o sol que Copérnico descreveu, talvez, como um nome apenas e em nome de uma visão que não era, todavia, a dos olhos seus.

Respiro fundo e sinto o cheiro do mofo que cobre as paredes do quarto. Mas faço surgir renitente a imagem da pele, cuja cor dá também vida a uma pintura nascida sem tela. Mas pele, branca ou bege, pontuada por sinais mais escuros como que pintados à ponta de um lápis, essa pela não exala, como se pede, o cheiro que um dia teve lugar sob minhas narinas. O cheiro não é, com efeito, da memória um talento exemplar; permanece intocado. Quanto mais aspiro mais é, nada obstante, o branco (e tanto menos o bege) - da superfície por onde se espalham aqueles pequenos sinais - que sobe e me penetra os pulmões em imagens visíveis ou quase, sem odor algum a evocar. Se sob as narinas vigilantes, todavia, esse aroma exalasse novamente, eu poderia tê-lo outra vez e reconhecê-lo. A memória é um pintor virtuoso mas um perfumista apenas medíocre ou nem isso; e se nem mesmo no espaço memorial rarefeito tenho eu a presença do cheiro, pouco tenho as palavras que me possam nessa arte delicada guiar para retomar da baunilha outra coisa que não o amarelo vivo das suas flores.

Como guiasse, na memória do músico, o timbre, os intervalos e as notas de canção silenciosamente retomada; porque também ali a harmonia permaneceria incógnita se não houvesse sabor e individualidade em cada som que se evoca. Mas a minha lembrança é nesse campo, ainda, uma orquestra vacilante. Pois quando penso na voz é a imagem da boca a mexer o que surge ao redor dos meus ouvidos. Aquela voz que um dia antes sussurrou em um ouvido meu, não retorna e não me parece haver meios para fazê-la retornar senão no que se pode rever do resvalar ruidoso do ar sobre os lábios rosados e um quase tom agudo, desvanecido, de quando um dia ouvi tal voz a cantar. É dos instantes em que ela sumia, entretanto, que a lembrança se faz mais rigorosa. Gravou-se dessa voz o silêncio numa imagem, ainda que intangível, para olhar; era o silêncio a nota dominante, sem dúvida, porque eram a mesma sentença o canto e ar que escapava através da garganta. 
  
Posso ainda vestir um corpo ao redor daqueles olhos, sob um tecido florido, prender-lhe cabelos ao redor de um rosto refigurado, ou ainda despir esse corpo e retomar novamente a imagem da pele branca, reinventar seios – como eram aqueles – pequenos e disformes como os de uma jovem há pouco tempo ainda criança, ou ainda o umbigo, que é agora apenas um pequeno orifício acima da pélvis, uma imagem sem fundo e sem superfície; um buraco negro que pede por ser esquecido pois que os dedos não mais lhe podem tocar.

Além de tudo, a memória não tem volume, não tem textura ou opacidade, pois detalhista ou não nunca nos leva ao centro daquilo que se empenha em mostrar. Nem as sensações e os sentimentos que nasciam no meu corpo quando da presença daquele outro traduzem aspectos de realidade alguma, já que a memória não se alimenta daquela matéria, mas das tintas dos sentimentos de agora. Talvez seja querer demais da memória, essa gravurista ambiciosa, não mais que oportuna, quando o caso requer mais que o naturalismo da pintura de uma paisagem ou natureza morta. Pois a essência não é apenas o azul que nascia nos olhos ou o cheiro do branco descansando sobre a pele, não é nem mesmo a transparência da voz na forma silenciosa do ar entre os lábios, nem é, ainda, os contornos do corpo ou menos o tecido e os cabelos ao seu redor.  A memória, ainda quando uma fotógrafa experiente e tenaz, não pode exprimir a essência quando se pede que essencial seja tudo: O todo, as partes e nada mais.

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