"Wir fühlen den Schmerz, aber nicht die Schmerzlosigkeit"
(Sentimos a dor, mas não a sua ausência)
Arthur Schopenhauer
Fecho os meus olhos e outros dois olhos, de repente,
aparecem diante mim; diante de meu peito ou ao meu redor; uma imagem que se
espalha e contamina aos poucos o espaço de minha percepção; não são, no entanto,
olhos de verdade o que vejo; e como poderia vê-los de olhos fechados? São olhos
não porque “ser” lhes funde em alguma verdade, mas porque uma existência sutil lhes
entrega o caráter de ‘coisa no mundo’. Olhos pintados por mãos invisíveis - a
memória é uma artista tão delicada; detalhista, algumas vezes e outras, apenas delicada.
Pois há esses momentos em que se apega somente ao essencial; desfaz o contorno
preciso em forma que já não se quer definida; derrama sobre o espaço intangível
entre os olhos e a alma a cor que dia houve visto em círculos e elipses em vida e movimento.
Agora, no entanto, retém perene e objetivamente apenas seu nome: azul. Mas a
palavra, somente, não faz jus aos olhos que dia estamparam essa cor; a mesma
cor, talvez, que Agamenon um dia viu sobre o Egeu quando da sua investida em
direção a Tróia. Mas também esses olhos, os do herói grego, não tem verdade que
não seja apenas o reverberar de um sentido que dia fez nascer a palavra,
ecoando através das vozes que se seguiram à voz de Homero ou nos palimpsestos
gravados a custo de mãos que hoje já não mais pintam.
Abro meus olhos e aqueles olhos outros permanecem diante de
mim sem dirigirem-se aos meus, pois sua imagem imprecisa não se delineia através
da visão e nem é o sol quem a alumia; esse mesmo sol que um dia iluminou a
visão que Galileu teve do azul num céu à luz do dia; o sol que Copérnico
descreveu, talvez, como um nome apenas e em nome de uma visão que não era,
todavia, a dos olhos seus.
Respiro fundo e sinto o cheiro do mofo que cobre as paredes
do quarto. Mas faço surgir renitente a imagem da pele, cuja cor dá também vida
a uma pintura nascida sem tela. Mas pele, branca ou bege, pontuada por sinais
mais escuros como que pintados à ponta de um lápis, essa pela não exala, como
se pede, o cheiro que um dia teve lugar sob minhas narinas. O cheiro não é, com
efeito, da memória um talento exemplar; permanece intocado. Quanto mais aspiro
mais é, nada obstante, o branco (e tanto menos o bege) - da superfície por onde
se espalham aqueles pequenos sinais - que sobe e me penetra os pulmões em
imagens visíveis ou quase, sem odor algum a evocar. Se sob as narinas
vigilantes, todavia, esse aroma exalasse novamente, eu poderia tê-lo outra vez
e reconhecê-lo. A memória é um pintor virtuoso mas um perfumista apenas
medíocre ou nem isso; e se nem mesmo no espaço memorial rarefeito tenho eu a
presença do cheiro, pouco tenho as palavras que me possam nessa arte delicada
guiar para retomar da baunilha outra coisa que não o amarelo vivo das suas
flores.
Como guiasse, na memória do músico, o timbre, os intervalos
e as notas de canção silenciosamente retomada; porque também ali a harmonia
permaneceria incógnita se não houvesse sabor e individualidade em cada som que
se evoca. Mas a minha lembrança é nesse campo, ainda, uma orquestra
vacilante. Pois quando penso na voz é a imagem da boca a mexer o que surge ao
redor dos meus ouvidos. Aquela voz que um dia antes sussurrou em um ouvido meu, não retorna e não me parece haver meios para fazê-la retornar senão no que se
pode rever do resvalar ruidoso do ar sobre os lábios rosados e um quase tom
agudo, desvanecido, de quando um dia ouvi tal voz a cantar. É dos instantes em que
ela sumia, entretanto, que a lembrança se faz mais rigorosa. Gravou-se dessa
voz o silêncio numa imagem, ainda que intangível, para olhar; era o silêncio a
nota dominante, sem dúvida, porque eram a mesma sentença o canto e ar que
escapava através da garganta.
Posso ainda vestir um corpo ao redor daqueles olhos, sob um
tecido florido, prender-lhe cabelos ao redor de um rosto refigurado, ou ainda
despir esse corpo e retomar novamente a imagem da pele branca, reinventar seios
– como eram aqueles – pequenos e disformes como os de uma jovem há pouco tempo ainda criança,
ou ainda o umbigo, que é agora apenas um pequeno orifício acima da pélvis, uma imagem sem fundo e sem superfície; um buraco negro que pede por ser esquecido pois que os dedos não mais lhe podem tocar.
Além de tudo, a memória não tem volume, não tem textura ou
opacidade, pois detalhista ou não nunca nos leva ao centro daquilo que se
empenha em mostrar. Nem as sensações e os sentimentos que nasciam no meu corpo
quando da presença daquele outro traduzem aspectos de realidade alguma, já que
a memória não se alimenta daquela matéria, mas das tintas dos sentimentos de
agora. Talvez seja querer demais da memória, essa gravurista ambiciosa, não
mais que oportuna, quando o caso requer mais que o naturalismo da pintura de uma
paisagem ou natureza morta. Pois a essência não é apenas o azul que nascia nos
olhos ou o cheiro do branco descansando sobre a pele, não é nem mesmo a
transparência da voz na forma silenciosa do ar entre os lábios, nem é, ainda,
os contornos do corpo ou menos o tecido e os cabelos ao seu redor. A memória, ainda quando uma fotógrafa experiente
e tenaz, não pode exprimir a essência quando se pede que essencial seja tudo: O
todo, as partes e nada mais.
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