Na mesa vazia, uma carta se apoiava silenciosa. Pois nem a
mesa vazia, vazia estava, nem a carta se via, já que o envelope, fechado, a fazia adormecer. À volta, uma sala sem rosto. Um espaço não demarcado, escuro ou
semi-escuro, já que vultos transparentes circunscreviam o ambiente ainda por
ser descrito. De fato, não apareciam, mas se deixavam mostrar, ainda, nos
limites, nas bordas da imagem que nem forma tinha; imagem sem remetente, como a
própria carta ali dentro de um envelope quente.
É de se supor que o texto fazia menção a alguém, se dirigia
a um outro e, muito provavelmente, guardava consigo as frustrações, desejos,
idéias, os vícios, perturbações, cacofonias, inclinações, gestos e ensejos, alegorias,
ignorância e domínio de algum dispositivo autômato que fazia de seu senhorio
também um autor. Mas o texto - o texto mesmo - palavra e palavra conforme o que
se lia; se leu ou lerá, não estava à vista. E alguém, por certo, por isso se pôs
também aliviado. Porque também curiosidade e desprezo, zelo e audácia,
preocupação, perspicácia e contexto, eram em nomes as sombras, traços quase visíveis
dos vultos que ao redor da mesa - e da carta – circulavam no espaço de dentro
da sala, ainda que fora das margens. Já que a topologia do oculto é esse virar
ao avesso do plano; olhar de um lado e do outro sem ver a dobra, sem ver o
verso, sem frente nem costas nem lado nem todo – apenas o intermitente e
pulsante indeterminado.
Mas sob um olhar atento, mais fundo, ver-se-ia que a mesa
tinha do metal a textura, que a carta dentro do envelope, cuja superfície
brilhante acusava da substância o seu plástico, era de alguma matéria orgânica,
ou quase orgânica, arrancada a um ser outrora vivente e a tinta vermelha do
texto (pois vermelha devia, a tinta, ser) seria urucum ou cádmio, ou ainda
algum óxido, ou extrato de algum vegetal amargo, ou, quem sabe, sangue de algum
animal ainda não conhecido, produzido em laboratório ou nascido do cruzamento
impróprio de duas espécies inimigas e incorrigivelmente bélicas. Sob essa
escrupulosa atenção, poder-se-ia perceber que o negro do chão não era apenas da
luz a ausência, mas de algum óleo negro ou carvão, que se tivessem pés esses
vultos deixariam marcas e acusariam a presença indevida ou inoportuna que a
carta velada lhes recusava; que se tivessem peso esses vultos afundariam até os
joelhos e alardeariam suas pretensões escusas em gritos de socorro; e nesse
instante o olhar à distância desconfiaria da realidade da mesa flutuando sobre
a superfície negra, enquanto o envelope, por um instante, pareceria não estar
mais ali. Porque não se pode olhar em detalhe ao mesmo tempo o corvo no alto e
o bisão agonizando; não se pode ver em um único quadro o Brutus e o imperador
apunhalado; há que se recorrer então a outros termos; imagens outras e outras
vozes, outros nomes; já que a realidade não é atributo de um ente e nem uma
virtude fantasmagórica do ar que cerca a matéria. Realidade é contexto, e
apenas por sugestão de uma leitura não feita poderiam existir ao mesmo tempo a
carta e tais vultos, já que a cola que lacrava aquele envelope era - e pouca dúvida
parece restar sobre isso – a síntese e o suor de uma mentalidade vil; a força
descomunal, lâmina e as serras de uma arma branca sem cor; pois era o lacre a
própria medida do texto que se fazia ameaça e nem os vultos saberiam a
distância entre eles e o objeto que lhes dirigia diligente atenção, porque
esses vultos não tinham olhos e nem percepção alguma do espaço.
Quando alguns séculos mais tarde, uma palavra lançou
renovado interesse pela existência passada e confusa de um texto que seguiu
intocado por olhos humanos durante todo tempo em que se deitou silencioso e a
espreita sob a fina parede de um envelope branco, historiadores argutos
declararam haver decifrado o enigma e repetiram adiante conforme as leis das
instituições que arcavam com os custos de suas pesquisas:
“Desejo todo mal do mundo a vocês.”
Mas permaneceu, ainda, não revelado quem houve assim
desejado e a quem, por direito, o desejo se dirigia. Pois a ciência desses
homens não atende ao interesse de outros homens senão ao seu próprio interesse.
Do mesmo modo como, provavelmente a carta, se filiava também a um interesse
marcadamente particular.