quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A fístula

Havia um fantasma rondando sua cabeça. Dizia-lhe o que escrever, como escrever e escrevia, ele mesmo o fantasma, assumindo os dedos e os punhos do senhor ao seu alcance. Assim, costumava descrever ele suas crises de ansiedade que eram frequentemente seguidas de alguma repetição sem sentido apenas porque um homem assim possuído demanda ocupação menos ofensiva que seus próprios pensamentos.

A mínima sugestão de que alguma verdade exalava de suas palavras dava-lhe conforto maior ao abdômen, enquanto as pernas convulsas se rebatiam numa velocidade cada vez menor, conforme a calma se restabelecia findo mais um parágrafo a espera do próximo espasmo, que resultaria em outra descrição aparentemente inútil de sua condição doentia.

Era, no entanto, um fremir intermitente na boca do estômago que lhe parecia roubar de si seu comando. Aquela sensação indeterminada, cuja manifestação eminentemente física o faria contestar qualquer diagnóstico que lhe desse como origem um pensamento, o fazia perder o direito sobre aquelas palavras as quais ele tentava, inutilmente, dar o sentido de uma história. Imaginava, sempre frustrado por um condicionamento particular de sua doença, dar início a uma narrativa concisa onde todo aquele vigor nascido das contrações musculares e de distúrbios nervosos tomariam lugar em uma história cheia de vida e pulsante.

Pulsavam, em todo caso, apenas os dedos diante das teclas.

A frágil existência de um corpo, esse que se deixava evidente nas indeterminações de sua vontade, não era suficiente para que aqueles pensamentos que lhe assaltavam em imagens e vozes tivessem forma de discurso ou expressassem mais do que os devaneios de uma ansiedade transbordante e sem centro. Podia apenas impressionar-se com uma capacidade absolutamente inconsciente de utilizar a linguagem de forma minimamente inteligível, mas logo depois a impressão lhe fugia e precisava ele se perguntar se fazia aquilo algum sentido. Especulava a atenção de um leitor tão doente quanto ele mesmo, que reconheceria naqueles termos sua própria doença e, então, sentia-se inundado por uma vaidade lasciva que o dilacerava as entranhas por meio de um julgamento impróprio: Deveria mesmo um homem naquele estado ocupar-se com os pensamentos de um possível leitor?

Após mais um parágrafo, olhava ao relógio e percebia que o tempo não lhe estava a favor. O sono, a calma, ou qualquer condição que o pudesse ausentar daquele movimento quase ininterrupto das vísceras, dos ossos e de tudo mais que tivesse lugar dentro do corpo, não estavam lá. A história prometida, onde um provável personagem se fizesse de motivações cabíveis em uma ação que justificasse qualquer atenção de um leitor qualquer, muito menos.

As vezes tinha a impressão de que as palavras que fugiam aos dedos irriquietos das mãos poderiam também vir dos dedos dos pés, que se mexiam na mesma proporção e velocidade. E nesse momento percebia que a doença se manifestava em palavras, repercutiam aqueles espasmos como uma reação cutânea que tem lugar num tecido infectado. As palavras eram o próprio pus que o corpo expelia conforme a ansiedade se debatia com aqueles membros sem dono, órfãos de um comando mais digno ou um comando qualquer.

Razão é placebo; homeopatia leviana que se esvai na mesma proporção que o adocicado que a acompanha no paladar.

O coitado seguiria perdendo o controle das suas ações mesmo quando os dedos largassem a faina obcecada dos períodos e tempos verbais, e a ansiedade se refletiria em alguma outra atividade de objetivo oculto. Faria a barba dezenas de vezes, até que pequenos cortes evidenciassem o absurdo e a destemperança que o levariam em seguida até o chuveiro, e depois mais dezoito vezes quando findaria também o terceiro e último sabonete a disposição; devoraria tudo quanto fosse comestível na despensa; cortando as unhas dos pés e das mãos se sentiria pequeno porquanto apenas vinte dedos se fizessem a disposição: eles pareciam tão mais numerosos diante das teclas – pensava ele; contaria todos os azulejos da cozinha, do banheiro e depois da área de serviço e, inutilmente, se faria perder nesses números que esqueceria logo em seguida conforme esquecia também... Pois quando o esperado sono finalmente o alcançasse ele já estaria tão longe daqui que nenhuma palavra se poderia fazer ecoar - senão o silêncio.

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