Então, eu havia
parado de tomar notas. Percebi-me completamente outra pessoa, pois,
aquele de antes, sempre disposto a tomar notas das ideias mais
incabíveis era uma criatura sã e consciente de si – uma
contradição tão harmoniosa quanto a própria palavra, já que a
consciência de si conserva um parentesco inevitável com a loucura.
Afinal, a consciência de si é a própria negação da vida,
resultado do fluxo incessante no qual o mundo - a envolver-nos com
suas coisas de mundo - faz de nós parte dele. Quanto menos
conscientes de nós mesmos, mais nos permitimos ser com o mundo, e
isto é o resumo próprio da sanidade.
Mas nas ideias que
deixamos pra trás, pintam-se retratos de uma realidade que nos
apresenta o mundo em singular clareza. Por isso mesmo, a sanidade
difere essencialmente da consciência de si, que é lucidez, clareza…
a sanidade , por outro lado, é contraste, instável, indeterminada –
é encontrar-se no fluxo ininterrupto das ideias sem prender-se a
nenhuma delas. Mas ideas, veja você, todos as tem, o tempo todo.
Diferem, no entanto, aqueles que tomam notas, alcançando-as – as
ideias – fora da água corrente da vida ela mesma. Percebem-se,
então, como seres pensantes, porque pensam ideias e, em dado
momento, param-se nelas, interrompendo a sequência inabitável dos
pensamentos que dão margem a própria vida. Recortam - no mar das
coisas pensadas, passadas e presentes – um instante impregnado de
um sentido tão particular, que não é possível ter os dois ao
mesmo tempo: a vida e o pensamento. Porque a vida é o movimento dos
passos que se ultrapassam, e o pensamento é o momento preciso da
chegada do pé ao solo.
Foi quando parei de
tomar notas que o tempo correu, como quem corre ao supermercado para
comprar café, açúcar ou batatas. Nimguém é, de fato, consciente
de si enquanto compra batatas e, no entanto, é a sanidade necessária
para comprá-las. Mas quando tomo notas, reconheço que as ideias
existem em si e por si; eu mesmo existo porque as concebo e as
circunscrevo à parte da vida mesma, mas posso deixar-me novamente
perder no fluxo incessante que a sanidade me pede, porque tenho
naquelas inscrições pontuais um recipiente seguro para esse líquido
semitransparente que são as ideias. Tomar notas, alguns dizem, é a
atitude dos acumuladores, guardando caixas e partes sem todo, apenas
porque esperam que o mundo que agora os rejeita, recorra novamente a
eles, num tempo ainda não desdobrado… mas a memória também é
acúmulo. Foi, pois, quando parei de tomar notas que me vi sem
importância para um eu futuro – um eu que tangencia a consicência
do agora, mas que se projeta adiante, como um membro que se alonga
para alcançar aquilos que os olhos apenas veem a distância. O homem
que se pára diante de um pensamento, reflete a si mesmo, como ali
houvesse um espelho, o pensador indisfarçável de uma ideia, mas ao
refletir essa imagem, anuncia também uma criatura nova e que se
transforma a cada movimento da luz no espaço.
Tomo, assim, mais
essa nota – da frustração dirigida de quem há muito não as
tomava - a vida vivida sem elas, parecia-me menos sã, ainda que mais
salutar... talvez porque me tenha acostumado a pensar-me como alguém
que as toma.
Mandarei escrever na
minha lápide, tomando a nota em pedra: “Também não há mal algum
em comprar batatas, ainda que as batatas nada digam de ti. Pois,
somos mesmo, apenas até onde nossa fome nos dá permissão.”
A vida, de qualquer
modo, é outra coisa… e não cabe na nota.