O barulho do ar que
escapa - como resultado da descompressão que regula o funcionamento
do ônibus quando este pára e abre as portas – chama atenção do
pedestre que segue distraído. Entram os últimos e o veículo fecha
as portas enquanto o ônibus permanece parado devido ao
engarrafamento que enfileira dezenas de automóveis naquela Rua do
Passeio, já quase em frente a Escola de Música da UFRJ.
Uma panorâmica: da
calçada, é possível ver toda a extensão lateral do veículo, com
suas janelas dispostas de modo a convidar diálogos soturnos entre os
passageiros que habitam tais posições e os outros que esperam no
ponto. O olhar fixo de um garoto na parte de trás do ônibus chama
atenção: ele recai sobre a figura de uma senhora que, com os braços
cruzados, mantém firme a bolsa pendurada em um deles. A mulher
ignora a presença do menino que se faz sentir cada vez mais a medida
que a atenção do espectador delineia a cena. O menor, preto e em
cujos trajes (ainda que em relação apenas àquilo que se dispunha a
vista) se identifica uma condição social definida, encara uma
mulher na idade de seus, talvez, 50 anos, vestida como que atenta ao
escrutínio social que a cerca. Não se pode dar a ela, precisamente,
um contorno de classe, e o fato de que ela espera em um ponto de
ônibus redimensiona a desconfiança do avaliador, que a primeira
vista identificaria naquelas roupas dela o traço residual de um
privilégio, ainda que relativo.
Num primeiro momento,
entende-se que se trata de um olhar de intimidação pelo simples
fato de que o olhar que ele dirige a ela não cessa e não quer
cessar. A natureza intencional do gesto, em todo caso, se torna mais
clara a medida que o rapaz começa a cantar; primeiro, baixinho e em
crescendo até que ganhem definição os significados que ali
se veiculam:
“Eu sou ladrão! Eu
sou ladrão! E você não pode nada!” - A melodia remete
inequivocamente ao gênero de funk associado, em grande medida, às
favelas da cidade - “Se eu quisesse eu ia aí e pegava a tua bolsa!
- sem rima ou estrutura definida, apenas melodia e palavra como se
quisesse com aquilo configurar uma indefinição estratégica entre
o canto e o discurso objetivo. E retornava e prosseguia, até que um
ritmo particular começasse a tomar forma na repetição induzida à
maneira de um leitmotiv: - “Eu sou ladrão! Eu sou
ladrão!...”
A mulher, já
consciente da presença daquele que antes não era senão um
fantasma, tensionou os braços cruzados, fincando as mãos por entre
as axilas, de modo a certificar-se da segurança com que matinha a
bolsa presa, pelas alças - ao redor de um dos ante-braços. De uma
ingenuidade obtusa, no entanto. O ladrão de fato, não é aquele que
anuncia sua presença, declarando com palavras – do contrário - a
ausência da intenção para o roubo. Da contradição evidente,
então, desenrolava-se uma ficção bastante original; marcadamente
irônica e carregada de um simbolismo o qual apenas o contexto
poderia fazer tornar-se inteligível.
A imagem da bolsa
protegida se dirigia ao pobre passageiro como uma declaração
sub-reptícia e, em última instância, uma ofensa. Assim como o olhar
dele, fixo e intimidador, se desprendia em resposta como num jogo de
significados em que nada era em ato, mas, ao contrário, tudo era
sugestão. Na exegese do rapaz, a precaução da mulher fazia menção
a si ou, pelo menos, ao lugar por ele ocupado naquele cenário
indistinto; do mesmo modo como interpretava ela sua própria
segurança a partir da tensão acumulada entre os braços e em defesa
da bolsa. Mas porque não houvesse seu olhar chamado atenção da
moça – e apesar de toda a intensidade em que culminavam aqueles
olhos ocupados, o silêncio é justamente aquilo que faz do olhar uma
voz a espreita – viu-se impelido a tornar audíveis as palavras que
até então não estavam senão implícitas. Assim procedendo, no
entanto, inaugurava o garoto um novo regime para o discurso, forçando
o diálogo como um cantor de ópera que se impõe a seu público a
plenos pulmões. E como na ópera, comprometia-se menos com a
realidade que com a forma com a qual tratava seu tema - uma receita
comum a quase todos os fenômenos que se inauguram em um regime
estético.
Mas nem por isso, se
podia dizer que não houvesse ali um interprete preocupado em
compensar a fragilidade diegética da performance, com o apelo
humanizado de quem incorpora os sentimentos que deseja expressar em
uma segunda camada não tanto involuntária quanto intencional, ou
seja, não como aquele que sente, mas como aquele que inventa e faz,
por isso, do sentimento uma razão inequívoca, notável era o tom
ameaçador com que sua música seguia a melodia pouco prodigiosa em
curso. O volume induzido, portanto, era apenas aquele necessário
para fazer-se ouvido pela mulher e mais um ou dois transeuntes
atentos a volta, como aquele que testemunhava a encenação.
Para a mulher, a quem
parecia importar menos a forma que o conteúdo explicitamente
evocado, o terror tornava-se nota em destaque, porque sob a nódoa da
ficção escondia-se então uma realidade em potência, em que se
fazia vibrar dos sentimentos a espera antes o medo que um regozijo
qualquer diante da beleza dos traços originais de uma peça como
aquela.
A quem, no entanto,
observava a distância os detalhes e casuais ornamentos como signos
da obra em processo - reconhecendo não apenas o drama em relevo como
a interpretação acabada, que sonora e expressivamente ressaltavam do
artista a marca de uma kunstwollen feita evidente, enxergando
não somente a técnica, mas principalmente a inteligência com a
qual o autor se tornava o veículo de uma poderosa crítica a
sociedade em questão – , e porque não houvesse aparato
institucional algum dando contexto ao dispêndio de gritos de louvor e
aplausos, restava apenas o elogio interiorizado da
contemplação em retorno.
A arte é a forma
magistral pela qual, ao atentarem uns aos outros os indivíduos de um
mesmo contexto, assumem-se na ignorância mútua de suas razões
profundas no momento mesmo em se desfazem dos julgamentos
precipitados em nome de uma consideração segunda, para finalmente
perceberem que o significado pleno da ação está na simples atenção
que se dirige a ela.