É comum o relato de pessoas que encontram dificuldades em descrever, sobre os seus sonhos, inicio ou fim. Por isso mesmo, parece oportuno concluir de que se trata, o sonho, de um fenômeno psíquico com independência ao menos relativa da vida consciente, lógica e sequencial, a partir da qual estabelecemos as narrativas que guiarão nossa vida social, nossas relações e nossos afetos. Eu mesmo desconheço quem tenha estabelecido relação intensa e de longo prazo com alguém cuja presença em sua vida se fez na maior parte do tempo atráves de sonho ou mesmo apenas ali. Há algum dispositivo eficiente que garante autonomia aos sonhos e nos permite abandonar aquela vida que se teve durante toda uma noite como ficção vulgar; são fantasmas que se dissolvem tão logo se recupera a vigília, mas o mais importante, dissolvem-se com eles todos os sentimentos experienciados e os afetos que durante aquele fluxo de imagens se fizeram de algum modo presentes. Mas, hoje, algo incomum aconteceu.
Em primeiro lugar, o
sonho se inicia com a disposição de uma clareza narrativa que
poucas vezes reconheci nos relatos dos outros ou na minha própria
vida passada de sonhos. Há um cenário bem definido e uma razão -
embora não muito clara - destilada na atmosfera do sonho para a
minha presença naquele cenário. Visto um uniforme que me
infantiliza, mas que é também a marca distintiva de todo aquele
espaço cênico, já que todos a minha volta compartilham o mesmo
uniforme. Reconheço nele a instituição de um passado que a minha
memória parecia ter deixado para trás há muito. A sensação de
ser novamente um colegial, no entanto, parece encontrar eco numa
experiência recente, na qual me fiz frequentar diariamente um curso
de língua por mais ou menos cinco meses num país estrangeiro, onde
a maior parte dos elementos que caracterizavam minha vida adulta não
se faziam ativos. Lembro-me de sentir-me ao mesmo tempo constrangido
e excitado com a sensação de ser novamente “criança” durante
aquele período; a frase “vou para escola” causava-me certa
angústia particular toda vez que saía da minha boca, como se algum
mecanismo psicológico delicadíssimo me desse advertência moral
sobre a impossibilidade de retroceder, em outras palavras, de que a
vida adulta me deveria ser um fardo a ser carregado sobre os ombros
agora e indefinidamente. Mas algo diferente acontece aqui: estou
cercado de crianças; adolescentes em cuja juventude, no rosto
estampada, espelha-se a minha própria. Há uma razão, como eu disse,
para a minha presença naquele espaço e ninguém a minha volta
parece questionar a pertinência dela, ainda que ela não se faça
explícita em nenhum momento, mas essa razão não se encontra em meu
passado. Há algo de ambíguo na infância que se faz em mim reviver no espaço daquele sonho, já que sou ali o mesmo adulto que era horas antes de mergulhar naquele sono mais ou menos profundo. Afinal, a vida (também a do sonho) é sempre a vida
presente.
O espaço, no entanto,
não recupera a arquitetura da instituição verdadeira, que posso,
agora, depois de acordado, acessar em minha memória. Trata-se de um
espaço aberto, sem salas de aula, onde as pessoas se amontoam aos
grupos que eu vou reconhecendo e abordando, pouco a pouco. O momento dessas apresentações parece também ter uma justificativa narrativa, mas
não só: é, a mim, possível identificar com muita clareza aquela
sensação, misto de alívio acadêmico e comprometimento social, que
o recreio entre as aulas sempre representou na minha vida escolar. Aqui, uma metáfora se descola do sonho e me projeta ao agora, o instante em que escrevo: o recreio é, como o sonho, um espaço de transição; uma interrupção que se define antes por tratar-se de um mundo entre mundo que por sua imanência mesma. E algo mais tensiona a diegese que esse esquema narrativo
subliminar sustenta: a nostalgia que se intensifica em mim a cada
rosto que reconheço como figura do meu passado.
Sigo até eles e, um por um, os abraço, exteriorizando e reiterando com palavras saudosas essa nostalgia que me assalta. Recupero alguns nomes, outros permanecem ocultos. Alguns parecem refletir um sentimento nostalgico ao meu análogo, outros remoem certa indiferença como houvessem conservado uma vida privada durante todo esse tempo e a qual eu não posso ter acesso.
Sigo até eles e, um por um, os abraço, exteriorizando e reiterando com palavras saudosas essa nostalgia que me assalta. Recupero alguns nomes, outros permanecem ocultos. Alguns parecem refletir um sentimento nostalgico ao meu análogo, outros remoem certa indiferença como houvessem conservado uma vida privada durante todo esse tempo e a qual eu não posso ter acesso.
Converso em privado com
uma jovem, namorada de um colega de classe, que me conta dos seus
planos de estudar na suíça. Há, todavia, algo de diferente nela.
Na sua imagem e nos sentimentos que eu mesmo dirijo a ela, encontro
traços de uma outra figura, essa mais recente na minha história
pessoal, mas do mesmo modo uma “namorada de um amigo”. Não
questiono a “fusão”, de todo modo, porque parece-me algo
natural. Aquelas pessoas parecem não carregar a responsabilidade de
conservar uma identidade precisa, como se houvesse um entendimento
silencioso de que são todas projeções minhas: um pacto que precisa
permanecer não dito para que a diegese se conserve de algum modo
intacta.
Sentados num degrau
estrategicamente localizado no pátio, que não possui nenhuma função
arquitetônica senão a de ser assento para aquelas duas figuras do
meu passado, estão “Frangolino” e “Scooby Doo”. Uma feliz
coinciência trazer à tona essas figuras da ficção infantil do meu
tempo, mas os nomes são reais, ou ao menos tão reais quanto as
alcunhas que adquirimos com tanta frequência na vida jovem.
Abraço-os, os dois de uma vez. Tomo, em seguida, Frangolino pelos
ombros e ofereço a ele palavras de afeto, transbordando com a
excitação nostálgica que parece não me abandonar durante todo o
sonho. Posso encontrar com precisão agora na memória detalhes do
seu rosto que me querem denunciar que a “realidade” não é mais
que um truque cinematográfico: um sinal tímido ao lado do nariz
cheio de personalidade (que lhe garantiu o apelido eminente) se
projetando com sua anatomia peculiar embaixo do arame delicado e
prateado da armação retangular dos óculos, enquanto o rosto de Scooby é apenas uma superfície manchada ou uma imagem sem foco e translúcida, mas sobretudo um nome. Porque no sonho, mais do que em qualquer outro lugar, conservam as palavras e as coisas uma identidade solícita; e mesmo material. Por isso mesmo, naquele universo, não há maior grau de realidade numa pedra do que há num fantasma; o sentimento não é, também, menos real que a ação; os corpos e os espíritos são, então, apenas as colorações sutilmente distintas que se deslocam na superfície de um líquido - meras refrações luminosas, talvez.
Mais a frente, um grupo
de figuras indeterminadas. Chego a eles e ofereço a saudação
comovida de um amigo do passado, mas eles parecem não me reconhecer
de imediato. Vasculho separadamente pelos rostos do grupo e também
não os reconheço. São, contudo, mais jovens que os outros.
Largo-me, então, à conclusao de que são calouros. Essa ideia
parece acalmar o meu constrangimento pelo engano da minha abordagem.
Esse constragimento, por sua vez, conserva também sua função
diegética, fazendo-me ignorar que aqueles figurantes não tem
personalidade própria, que são figuras sem qualquer densidade,
talvez mesmo incapazes de comunicarem-se simplesmente porque minha
psiquê é incapaz de lhes emprestar voz ativa. Em todo caso, a
rejeição momentanea reacende em mim do mesmo modo uma memória
particular. A consciência contida de que sou eu mesmo a razão de
ser daquele universo não me concede autonomia absoluta sobre os
meus sentimentos entre os quais a rejeição parece ocupar um lugar
de destaque.
Agora, caminho junto a
um grupo de amigos por um corredor que vem de lugar nenhum e parece
se dirigir a lugar algum e outra figura se faz em destaque vindo na
minha direção. O movimento é uma constante porque o espaço e as coisas são acentos e tonalidades de um mesmo fluido. Corro para cumprimentá-lo, entusiasmado, ele aperta
a minha mão e parece sustentar um sorriso ambíguo. Eu comento sobre
um sonho recente meu, no qual ele haveria dado o ar de sua graça.
Logo, a ambiguidade se faz declarada. Ele acusa meu entusiasmo,
sugerindo-o tratar-se de mera falsidade. Argumenta que esse sonho não
existiu e que eu não me lembro, de fato, dele. Eu me defendo dizendo
que no sonho ele não era exatamente ele, mas uma fusão na qual sua
figura, no entanto, assumia um papel de destaque e descrevo brevemente seu contexto de aparição, como se esse preciosismo descritivo conferisse ao sonho textura real alguma.
Ele me desafia: “Qual o meu nome?” Eu não tenho a resposta de
pronto. Vejo o nome “Nathália” como uma imagem dentro da imagem.
Quando, no entanto, preparo-me a oferecê-lo como resposta, percebo
que não faz sentido. A figura a minha frente atende pelas determinações do gênero masculino. Pocuro no “n”
uma sonoridade familiar e dali extraio um outro: “Daniel” - é a
minha resposta final. Ele não aceita e reitera: “Você não sabe
quem eu sou!” - cheio de ressentimento, como se eu o houvesse
abandonado sob os escrombos de memórias insignificantes. “Meu nome
é Araquém”, diz.
Eu não acredito. O
nome parece inventado - lembro-me de haver assim pensado. Eu me
lembraria de um nome incomum como esse se alguma vez ele tivesse
tomado parte na minha vida social. Percebo, então, que ele mente, ou
melhor, que dá para si um nome como se se quisesse afirmar, altivo,
independente, como se dissesse: “Eu sou muito mais que uma
lembrança vaga que você largou como um canivete sem uso no fundo de
uma gaveta”.
Daniel, esse era o seu
nome - digo a mim mesmo em pensamento. Deixo-o com o seu
ressentimento e sigo em frente. Talvez o tenha deixado no fundo
daquela gaveta por algum motivo, talvez não, mas devo acordar logo e
não quero perder esse tempo precioso do sonho com ressentimentos.
Novamente, sou invadido
por aquela excitação nostálgica. Reencontro um amigo e o abraço.
Tomo seu rosto em mãos e tenho lágrimas nos olhos. Reconheço uma
ponte entre o sonho e a vida real e digo a ele que devemos sair para
tomar uma cerveja lá fora, quando o sonho acabar. Ele pondera,
dizendo-me que mora longe. Eu contra argumento prometendo buscá-lo
em casa e acordo.
Mas dessa vez, algo não
muito comum. Os sentimentos não se dissolvem com as imagens do
sonho. Eles permanecem lá ainda por muito tempo. Melancolia descreve
sem muita precisão a maior parte deles. Sinto-me de algum modo
culpado por todos aqueles que abandonei sob os escombros de memórias
insignificantes. Procuro, caso a caso nas figuras que me houveram
brindado naquele sonho com a sua presença, o momento em que essas
memórias deixaram de ter valor e encontro uma justificativa que
parece me aliviar daquela culpa. Eles escolheram, de uma maneira ou de outra, o
papel que representavam no sonho e tinham todos ali isso em comum:
eram todos memórias mais ou menos vagas; imagens que não conservam
relação alguma com minha vida presente; figuras sem história - não
casaram, não tiveram filhos, não se tornaram profissionais
respeitáveis ou mesmo adultos irresponsáveis ou delinquentes; não
faleceram em acidentes de carro, não se tornaram pessoas públicas
eminentes. Também não tiveram oportunidade de conquistar minha
admiração furtiva e silenciosa pela forma como se comportam e
conduzem sua vida social dia a dia.
Mas a memória tem sua
mecânica complexa, não como uma câmera ainda que moderníssima,
pois ela não grava apenas imagens e sons. Ela confere independência
de tal modo aos seus registros, que concede a eles - de forma
relativa e condicionada, é verdade - uma vida e uma dinâmica
próprias. Eles podem falar dentro dela o que nunca foi, de fato,
dito; podem performar movimentos que nunca foram, de fato,
articulados; podem ressentir-se e entregarem-se ao ressentimento em
palavras ou podem calar; a namorada do amigo tinha planos de estudar
fora; Daniel rebatizou-se com o nome de um Pajé Tabajara, pai de
Iracema na ficção de José de Alencar - que eu até então
desconhecia; e os sentimentos que se tiveram em algum tempo
registrado podem ainda fazer chorar quem os carrega ocultos... quem
sabe a grandiosidade de seus gestos e de suas palavras que se
transformam a cada segundo no submundo da memória, enquanto a vida
consciente segue, bruta e pragmática, ignorando-os, como o mundo
real ignora seus esquecidos?
Que a tirania dos
poderosos não nos sirva de exemplo em nosso reino privado, pois a
vida já é desumana o bastante lá fora...