Não há introdução
mais oportuna ao orador que o silêncio.
Porque o silêncio
reforça a responsabilidade do ouvinte ou, simplesmente, porque
dissimula a responsabilidade do que fala. Esse traquejo do versador
presente também faz recair sobre os ombros do que ouve qualquer
culpa pela qual não seja o discurso justificado ou eficiente.
O silêncio é também
um recurso engenhoso que sibila no interstício entre a visão e a
memória, lá onde ecoa uma voz noturna que se desdobra a partir da voz muda e
transparente daquele que lê. Pois, é essa voz fantasma que ressoa
soberana quando o mundo disponível a volta precisa resumir-se ao
texto que enfrenta; não há espaço para ruídos nem mesmo
imaginados; a linguagem é um campo de virtuosidade tão plena, que
faz da memória meramente um instrumento peculiar.
O chefe de um Estado
democrático tanto quanto o ditador implacável; o padrinho que toma
a palavra no brinde tanto quanto aquele ocupado com o panegírico de
uma alma em retirada; o mágico, o palhaço, o amante ou amigo em
desabafo, a aeromoça em demonstração, o cineasta; todos pedem o
silêncio diante de si, porque sobre essa solenidade edificam a
dignidade de sua arte; o professor, esse homem que se acostumou com
os privilégios da posição que ocupa e teme olhar no espelho e
enxergar apenas uma autoridade vazia, como as insígnias de um
capitão em tempos de paz; após o sonoro e triunfante silêncio,
essas crianças diante da autoridade irão celebrar cada palavra
alçada simplesmente porque o silêncio um segundo antes fez delas
palavras de mérito.
Mas o silêncio,
legitimador absoluto da eminência do enunciador, é também um vilão
a espreita. Pois se o ouvido deseja e espera um só ruído diante
si, o silêncio é como um acorde dominante que espera sem sucesso um
tom que o resolva. Pois ao desejo silencioso, o silêncio não é
senão frustração.
Mas não pense você
que este é um trato sobre o silêncio, pois não é. Se fiz do
silêncio introdução foi porque o tema requeria um tal ornamento.
Por razão da importância dessas memórias, pedi o respeito em
medida, que aqui não se teria apenas com o silêncio bruto da folha
em branco; fiz então do silêncio narrado o símbolo oportuno.
Mas memórias também
não se deitam aqui por puro acaso e a tristeza que você reconhece
ou reconhecerá na melodia que agora ecoa e se espalha
orquestradamente ao redor dessas palavras, é a minha tristeza, bem
como as memórias com as quais ela se ocupa... ausências que
justificativa alguma poderia saldar.
Ainda assim, não há
morte que se reconheça neste manifesto. É a vida que segue
onipresente e porque seja a morte uma impossibilidade literária,
como é para uma consicência viva impossível tomar da morte senão
os símbolos e jamais a dinâmica dos fatos, você não verá
sangue, aqui; não ouvirá a narrativa de um acidente fatal; muito
menos irá testemunhar a descrição de um cadáver.
Quando eu era pequeno,
morávamos em uma casa com um grande quintal frontal. A cerca que nos
separava do vizinho não era suficientemente alta para manter
afastado do nosso terreno o seu galo. Um enorme galo - com esporas
longas e pontíagudas - que de tempos em tempos atravessava e montava
guarda em frente a nossa casa, no quintal entre a porta e o portão
externo. Quando acontecia, ficávamos presos dentro da casa,
aterrorizados com a postura ameaçadora do animal, que, conquanto
fosse ainda menor que o menor de nós, mantinha-se ereto e em posição
de ataque, insinuando investir contra um de nós sempre que um passo
a frente ou a cabeça enfiada pelo vão da porta fazia menção a
atravessarmos o quintal até a saída. Recolhíamo-nos em abrigo e
esperávamos o galo partir, para seguir nossas vidas em mais um dia
escolar ordinário.
Contei essa história a
mim mesmo inúmeras vezes depois disso, mas o medo que aquela cena
fez surtir na origem deu lugar a meras risadas, ainda que eu tenha me
furtado aqui ao tom anedótico que, percebo, agora, passados os anos,
convém ao caso. Mas não sendo mais possível reconhecer o medo
nascente no coração da criança diante de animal tão
insignificante em tamanho e anatomia, sou obrigado a supor que o medo
que me afligia era de outra natureza. Talvez, o de chegar à escola e
enfrentar, finalmente, a insignificância do discurso que se lançava
a nós como o de um promissor futuro; ou a ideia de que seguíriamos
pelos anos a fio e todo aquele comprometimento apenas para sermos
mais ou menos o que já éramos ou simplesmente a sombra de nossos
modelos instituídos; uma versão a mais daquela figura em cuja
autoridade se espelhava o melhor dos mundos possíveis a nossa
frente.
Mas é provável que em
idade tão tenra eu ainda não tivesse um juizo tal empunhado. O medo
devia então ser de natureza ainda outra. Apenas o que sei é que
parece impossível agora conciliar esses dois sentimentos, o
sentimento real e o que se recolhe à memória. Duas criaturas tão
diversas quanto o menino de antes e o homem de hoje, como o
personagem opaco e o narrador detalhista, não podem compartilhar um
sentimento mútuo, ainda que os sentimentos diversos atendam pelo
mesmo nome.
Certo dia, deixava-me
guiar em ronda noturna suspeita por um colega um pouco mais velho,
pulando de cerca em cerca nos terrenos da vizinhança, aparentemente
sem rumo – o rumo havia e estava por ele traçado, apenas eu o
desconhecia. O tamanho das cercas, veja você, não era problema. Se
um galo de não mais que alguns centímetros era capaz de transpor a
barreira que aqueles emaranhados de arame ofereciam, não seria
diferente para nós com nossos corpos leves e flexíveis de crianças
da terra. Para minha surpresa, paramos em frente ao pequeno viveiro
onde dormiam as aves da vizinha. Meu colega vasculhava aquelas
gaiolas em busca de algo em particular. Eu reconheci o galo sentado,
silencioso e indefeso no canto da jaula. Em uma gaiola ao lado, uma
pequena codorna, que meu colega tomou em mãos com cuidado antes de
seguirmos em retirada, deixando para trás o galo e a cena de um
roubo.
Trata-se, todavia, de
mais uma memória de cujo propósito nesse texto não se pode
precisar a razão. Os sentimentos que agora projeto são turvos e
confusos. Lembro-me de haver questionado o rapaz assim que chegamos a
sua casa. Tenho a imagem da pequena cordorna sendo deixada em um
banheiro de serviço que dava direto ao quintal na casa dele. Mas
também lembro, um tanto vagamente, a autoridade que ele exercicia
sobre mim pelo fato, talvez, de que fosse um pouco mais velho e
maior, ainda que a autoridade do galo se tenha imposto sendo ele
mesmo menor e mais novo. Tenho vivas, contudo, as duas imagens: a do
galo recluso e impotente em sua gaiola e a do animal altivo e
intimidador diante de mim, minha mãe e minhas irmãs.
Mudamos-nos alguns anos
depois. Nunca mais vi o Galo. Mas um medo de sair de casa pela manhã
me ocorre ainda hoje, sempre que um compromisso inexpressivo qualquer
me conduz de casa e porta afora num dia de semana que se repete. É,
ainda assim, um medo qualquer...
Soube que o Galo
morreu, embora a notícia, tendo-a recebido mais de uma década
depois de minha última experiência com o animal, fosse apenas uma
confirmação lógica de uma condição imposta pela natureza àquela
criatura. Mas eis o dado novo que se levantou apenas após o anúncio
do vaticinio: aparentemente, a dona da ave achava graça das nossas
batalhas mantinais pelo direito de ir e vir, de outro modo, a nós
garantido pela constituição - e em particular no terreno de nossa
residência - e, por isso mesmo, soltava o Galo pelas manhãs em
conivência com o paternalismo galiforme do eminente algoz meu de
infância. Mas sobre esse testemunho é também a memória de muitos
anos que me oferece a visada. Entre os sentimentos que transparecem e
se projetam - sem muita vida, contudo - esse figura apenas como um a
mais na extensa coleção de minhas lembranças.
A dona do galo viria a
morrer, também, alguns anos depois dessa confissão, mas sua morte
não servirá de apoio a um qualquer sentimentalismo, simplesmente
porque se trata de uma memória vazia de afeto. São, assim, os meus
afetos que impõe o rítmo e quando, sobretudo, me empenho em
salvaguardá-los do medo, tão iminente, de que seja tudo tempo
perdido; de que essa história seja pura e simplesmente uma covarde
espoliação do seu tempo - caro leitor -, enquanto eu, por puro
despeito ou vaidade, roubo a sua atenção sem mérito e nada a
oferecer, sem que galo algum se tenha posto entre nós e me impelido a fala; faço apenas porque é esse o medo que agora me assalta;
tão somente por isso estendo ele a vocês na forma de uma descrição
repetida, excessiva e, talvez, desnecessária.
Não é apenas medo da
frivolidade diagnosticada da circunstância desse apanágio, que se
reitera a cada volta em redundância nos arabescos destas linhas, mas
de que o sentimento real – aquele que sinto no corpo e que não
posso transpor a vocês senão indiretamente – seja insignificante
ou apenas mais uma expressão oca da minha vaidade. Mas eu sinto e
não há respostas para tais sentimentos em livros, artigos, filmes,
palestras ou missas. Meu sentimento por uma memória – conjunto de
imagens visuais e sonoras residualmente inscritas em mim - não se
pode justificar nem pelo objeto que referencia, que já não mais
existe, nem pela reverência em perspectiva a um mundo porvir, feito
quem sabe de luz e som, onde se faça estender essa existência que é
aqui, agora, negada, porque minha consciência privada não me
permite um tal recurso exegético.
Penso nela todos os
dias, todavia, e a comoção recorrente me é um fardo. Como se
tivesse entre mãos suas cinzas compactadas no volume de um saco
plástico transparente – e isso é o mais próximo da descrição
de um cadáver que se lerá aqui. E ainda que pareça possível
reconstituir das cinzas, e através do fogo de um momento antes, o
corpo sem vida e, antes ainda, a imagem em movimento que me inspira
desconsolo... Gostaria de ter agora a imagem do cigarro queimando,
lentamente, apenas para poder conservar em mente a medida e a
extensão do processo, porque o tempo me escapa e com ele a densidade
real dos meus sentimentos, que se dirigem nesse momento apenas a substâncias memoriais e não verdadeiramente as essas cinzas... caso as tivesse em mãos - Eu
tampouco fumo.
Posso chorar, e o tenho
feito diariamente. Mas estando sozinho, a quem ofereço esse choro?
Recrimino-me a cada lágrima, porque não sei, de fato, quão genuíno
é o sentimento com qual me ocupo. Costumo duvidar das expressões
emotivas rasgadas, ou atribuí-las apenas a um impulso teatral,
afinal, somos todos atores diante de um público sempre disposto. Mas
me pergunto: por que são tais sentimentos tão urgentes em declararem-se a mim mesmo, em voz alta, ainda quando não há ninguém à volta?
Há resposta alguma
nesses apelos? A minha própria morte deveria ser-me indiferente, mas
uma sensação distinta me acomete sempre que a projeto nos anos a
frente: algo como um deslocamento abdominal sutil, em cuja fisiologia
não posso procurar explicação alguma, pois pouco compreendo do que
se passa com meu corpo naquele instante: A morte é um colosso, eis
aqui uma resposta – A morte é um colosso.
Não me deveria culpar,
nem duvidar da comoção o enredo. Estranho mesmo é que haja
indiferença diante de morte qualquer que nos tome de assalto, ainda
que como um conhecimento furtivo.
A morte é um colosso e
nem mesmo todos os panegíricos do mundo e nem longos anos de
silêncio deliberado seriam suficientes pra dar conta da sua
dimensão colossal. Soa apenas absurdo que todas essas mortes estampadas em
reportagens ou nas páginas dos obituários diariamente não nos impossibilite de
dar seguimento, simplesmente, às nossas vidas.
Entenda agora a razão
dessa missa e desconte dela qualquer excesso que pareça querer
contestar destas linhas a mais honesta seriedade. Trata-se de um
apelo, um conselho ou tão somente uma sugestão: Não aceite nada
que não seja absoluto estarrecimento diante da morte, de quem quer
que seja, e mesmo de seu mais odioso inimigo.
A memória te trará
sentimentos mais brandos e o tempo a razão dos detalhes que não
couberam no momento. Mas a morte permanecerá intocada, inalterável,
incorrigível, pois ela é num só instante toda a explicação do
nascimento do mundo.