“Um crime sem
vítimas”. Foi assim que ele se referiu ao trajeto de sua conduta,
desde os pensamentos primitivos que o houveram impulsionado até a
última linha do texto, onde se descrevia a ação.
O interrogatório
prosseguiu: um inquisitor fazia perguntas e ponderava criticamente as
respostas que vinham em seguida: o interrogado, homem, branco,
heterossexual, bem vestido... havia sido chamado a depor após ter
sido denunciado por agressão. O contexto que praticava era o de uma
publicação recente, em que o autor relatava açoitar uma
prostituta, descrevendo, palavra por palavra, uma situação de
constrangimento, humilhação e covardia.
Defendia-se, contudo,
dando como argumento o escudo da ficção: - Nada ali é real. É
apenas um texto fictício. A figura da vítima não pode oferecer
denuncia simplesmente porque ela não existe!
Do outro lado, uma voz
feminina , calma e equilibrada, perguntava: - Por que, então, o
senhor sustenta toda a narrativa em primeira pessoa? - para ele, no
entanto, também aí não se configurava culpa por crime algum,
dizia: - A primeira pessoa não define, em si mesma, a concretude da
ação que relata. Aliás, nada a define senão a realidade em si. Eu
mesmo, que escrevo, não sou aquele a quem minhas palavras endereçam
identidade. Sou apenas o homem que empunha manualmente a linguagem,
materialmente constituída.
Mas a voz tratava de
colocá-lo novamente na posição que ali lhe cabia: - Você não
pode determinar a legitimidade ou não da sua condenação,
simplesmente porque não pode impor aqui suas regras. Neste espaço,
você é apenas o réu. Projetar sua defesa como um ataque aos meios
e razões de quem o julga é incorrer num erro ainda maior que aquele
pelo qual você está sendo julgado. Portanto, por favor, limite-se a
responder minhas perguntas
No texto, a mulher não
tinha nome. As poucas palavras que diziam dela, vinham através de um
narrador implacável, judicioso, autoritário e irônico. A ironia,
afinal, era o instrumento mesmo através do qual se fazia diminuir
aquela personagem à comparações grosseiras das mais baixas; dizia
dela objeto de consumo; emprestava-lhe formas, cores, um preço
determinado e um gosto particular, em cujos adjetivos se atestava,
não as qualidades de um indivíduo, mas o julgamento de um deus,
dono das verdades que produziam e eram produzidas pelas suas próprias
palavras.
Não sou eu dono das
imagens que me assaltam em íntimo? Não me pertence, por isso mesmo,
o inescrutável das minhas ideias? - Perguntava ao seu algoz em
defesa de si, mas também porque a pergunta traz consigo um tom de
autoridade que resposta alguma pode saldar. Conhecendo, no entanto, o
perímetro desenhado daquele movimento, abdicou de responder e,
novamente, após um curto e contido silêncio, perguntou: - O que o
senhor sentiu ao terminar, ao escrever a última letra? Quem o senhor
pretendia atingir com tal publicação? - Antes que o acusado
pudesse responder, a voz levantou-se (porque era ao mesmo tempo
também um corpo) e caminhou ao redor dele cadenciando os passos, intimidatoriamente. Também, por isso, a resposta não veio em
seguida porque estava tomado por medo o homem, sentado de frente a
uma pequena mesa de metal escovado, que poderia haver saído de uma
câmara de tortura ou de uma clínica veterinária. Ele podia, então,
imaginar-se sobre ela como um pequeno animal doméstico prestes a ser
abatido por piedade ou conveniência e isso fazia-o esquecer a
pergunta que lhe houvera sido feita, justificando o gesto que seu
inquisitor teve em seguida, o de arrastar sua cadeira, pressionando-o
contra a pequena mesa e exigindo resposta.
- Eu me senti... me
senti satisfeito. Não, não... me senti indiferente, como se
tivesse apenas cumprido uma tarefa ordinária. Não tinha em mente
um leitor específico, ou melhor, fazia-me eu mesmo de algo como um
leitor modelo. Como, aliás, acredito que façam todos os que
escrevem. - concluiu sentindo-se triunfante em sua sua retórica, após um inicio visivelmente sofrível.
- Você não espera que
eu acredite nisso, espera? - Disse ela, sem esperar resposta alguma.
Ele, então, se tentou impor mais uma vez, questionando o objetivo
daquela pergunta sem outro propósito senão o de intimidá-lo: - Por
que você faz isso? O que eu fiz pra você? - E se escondia assim
atrás de um véu de vitimização, como fazem todos aqueles em
situação análoga. Cumpre, pois, que o réu em um processo de
condenação é, também ele em certo sentido, uma vítima. Se
pudéssemos separar todos os eventos e ações em segmentos e
isolá-los de modo que não houvesse participação alguma de um no
outro, o acusado seria, em vista da punição a ele imposta, nada
mais que uma vítima.
Mas a justiça é um
ideia que requer dimensão ampliada e, portanto, não pode ser
apreendida senão através de uma imagem maior. Desse modo, dos seus
apelos pela compassividade de seu “carrasco”, a voz, e o corpo
que agora se podia enxergar ao redor dela, ouvia apenas o covarde
indigno, incapaz de se responsabilizar pelas palavras que lançava,
simplesmente porque estas ficavam para trás no tempo toda vez quando
ditas ou lidas. E a figura de vítima que tinha ele de si, então, se
deformava e assumia o aspecto do covarde manipulador, uma vez que
podia supor e imaginar, da voz, os juízos e as sentenças não
pronunciadas – o contexto é um código poderoso a partir do qual
podem ler, diversos interpretantes, uma mesma mensagem.
A voz se pôs em
silêncio e o corpo voltou a caminhar, dessa vez atrás dele, de um
lado ao outro. O barulho do salto, cadenciado e intermitente,
explodia nos ouvidos do acusado como golpes violentos desferidos
pelas costas com instrumento pontiagudo. Ele fechou os olhos e tapou
os ouvidos. Mergulhou fundo na imaginação dentro de si, aquela
mesma imaginação na qual havia ele (ou qualquer personalidade que
sua voz em primeira pessoa houvesse vestido) uma mulher humilhado.
Agora, apenas uma sala escura, vazia, repleta de pensamentos vagos,
culpa, ecos de uma narrativa na qual ele não era, como antes, uma
autoridade irrepreensível, mas um monstro tirano.
Abriu os olhos e olhou
ao redor a sala vazia. Nenhum corpo, nenhuma voz. Na mesa a frente,
agora peça de um mobiliário de escritório qualquer em madeira, uma
carta. Lançou os olhos ao texto, mas ele não precisou ler, porque
já o conhecia.
Assinou o documento
como confissão inequívoca dos crimes ali assinalados, levantou-se e
partiu sem precisar por os olhos sobre a sentença que concluía o
texto (saberia invocá-la se lhe fosse assim requerido) e dizia:
O autor será sempre o
herói das façanhas descritas, ainda quando a façanha descrita seja
um crime hediondo - e um crime hediondo será um crime hediondo
ainda que ficção seja, porque a realidade das palavras anunciadas procede por tautologia, simplesmente.