Entrei
no vagão e sentei-me num banco dianteiro, afastando-me da porta por
onde o calor escapava em toda parada pelo trem feita, recolhendo e
deixando seus passageiros.
O
trem acelerou. S42 Ring Bahn: o “S” faz referência ao título
Schnell (rápido) Bahn, que o sistema recebera na época de sua
criação, quando, quem sabe, justificava-se.
Hoje,
não há nada de particularmente rápido que, ali, faça valer menção
tão enfática.
Mas apesar do passado tão presente, é da atualização constante
que vive a cidade, fazendo dos prédios antigos e monumentos apenas
objetos de decoração. E o trem, esse velho senhor de tez tão
antiquada, segue fazendo voltas ao redor dela porque, apesar da
ferrugem que eventualmente assalta seus trilhos, além do passado, é
também o presente e, ainda hoje, o futuro (se é que ainda há
mesmo algum lugar para ir).
O
trem parou. Um senhor de barba e cabelos brancos entrou e anunciou
com uma voz rouca e cansada em uma língua tão rouca quanto, mas
ainda cheia de vitalidade: “Normaleweise würde ich Ihnen die
aktuelle Ausgabe der Obdachlosenzeitung Strassenfeger verkaufen. Die
aktuelle Ausgabe war so interessant, dass sie seit 4 Tagen
ausverkauft ist. Deswegen kann ich heute leider keine Zeitung mehr
anbieten. Ich bitte sie um ihre grosszügige Spende, dass ich morgen
Zeitungen der neuen Ausgabe kaufen kann.”
Trocando
em miúdos, o senhor pedia, por meio de um tal expediente,
contribuições para comprar exemplares da nova edição do jornal
que, hoje, ele não lhes poderia oferecer porque, “infelizmente”,
na razão de ser aquela edição “tão interessante”, já se
havia esgotado há 4 dias.
O
jornal, que atende pelo título de “jornal dos sem-teto”, faz-se
ali não apenas do veículo de informação - nova e supostamente
relevante -, como também instrumento de reintegração para alguns
desafortunados, através do qual a jornada diária do
excluído em angariação de meios materiais para sua sobrevivência
perde a indignidade atribuída por aquela mentalidade protestante e
se renova em trabalho, orgulho e recurso estratégico.
Mas
por razão de evento extraordinário ou talento editorial, fez-se
daquela edição tão valiosa que se esgotou. Naquele dado instante,
assim, o advento da notícia na forma do produto oferecido entrava em
conflito com as reivindicações de um passado moral ainda
determinantemente presente, fazendo ecoar - ainda que nas cabeças mais
desacreditadas - a ideia de que o trabalho dignifica o homem. Pois se tendo
vendido todos os exemplares daquela edição, ainda que se pudessem por isso vangloriar editor e redatores, ficou o pobre homem impedido de
exercer a parte que lhe cabia naquela cadeia de ação em justo
trabalho.
Pedir,
no entanto, não me parece pecado algum e, tampouco, é o trabalho
pelo trabalho em si um gesto acima de quaisquer suspeitas. O caso é
que não me dei ao trabalho de por nos bolsos a mão, como não o
teria feito pela compra da edição que, de todo modo, se esgotara –
interessante que fosse a notícia, a teria lido no conforto do meu
próprio espaço, através de veículo ainda mais rápido que o trem
abaixo de mim.
Mas
qualquer que seja a notícia, não é senão a cidade
que a torna possível e através de seus meios e no tecido de seus
encontros e reencontros, como nos trilhos em círculo daquela linha
eu, provavelmente, voltaria a encontrar senhor como aquele, em labuta
ou mendicância tão digna quanto a minha avareza ou a generosidade
de quem lhe teve algum dinheiro entregado. Porque do passado retive a
memória e o futuro só se faz existir em movimento e no espaço.