O tempo, aqui, conforme
compreenderá um pouco mais tarde o leitor, não se deverá precisar
e, assim, menos por uma questão do desinteresse ao contexto e às
circunstâncias que por medida de um interesse outro e particular,
dando nota a uma ideia de tempo que atravessa e ultrapassa o
descritivismo seletivo desse mero autor – ferramenta muita vez
eficaz, mas não mais que isso.
No meio da rua que
segue paralelamente à Quinta da Boa Vista e em direção a ampla
zona norte do Rio de Janeiro, um corpo se projeta arqueado, com o
rosto colado lateralmente ao chão, cintura empinada acima e os
joelhos um tanto dobrados próximos ao tórax, tal qual dispusesse-se
como arquitetura alguma, em cujo planejamento se atestaria apenas, no
entanto, a circunstância, armada em ossos e carne e roupas. Os
carros, das velocidades reduzidas em razão do inesperado obstáculo,
contornam o cadáver, a partir do qual segue-se, desde a cabeça,
uma corrente de sangue atenta à geologia particular do asfalto, e fazendo-se dividir em seguimentos e afluentes diversos, como um
grande rio margeando uma grande cidade.
Na calçada ao lado
esquerdo, alguns metros a frente, seguindo a disposição de um
narrador que se move em seu carro em fluxo coerente com a velocidade
e o sentido em que se orienta o organismo urbano compreendido por
esses veículos em uso, um aglomerado, de dez a doze pessoas,
destaca-se pela gesticulação exagerada e enfática e pelo tom
exaltado em que se estabelece a intervenção sonora de dois ou três
destes, de modo a atravessar a intimidade daquela reunião e alcançar
o espaço privativo dos motoristas dos veículos em trânsito.
A reunião, em todo
caso, pede orientar-se pela figura que enreda o momento, largada ao
asfalto, mercê da severidade de um juízo que qualquer motorista,
ali, desavisado que seja, será capaz de impor a uma dúvida qualquer
que se lance: está morta.
Os trajes desbotados
acusam uma posição social definida, como também o local em que se
revela. O cabelo comprido e o corpo exageradamente feminino
contrastam com a virilidade sutil e incalculada que escapa do rosto,
como se a natureza fosse um aspecto a sublimar. Mas, sobretudo,
qualquer questionamento de gênero se fará irrelevante ao testemunho
de um que atravesse o instante e não guarde da cena mais que a
monumentalidade e o vigor estrutural daquela peça sobre a qual se
pede apenas o desvio e a indiferença medida que se deve entregar a
coluna aquela em honra ao herói de outros tempos.
Não há tempo, ali,
que se deva, então, medir. Nem mesmo o atraso do passante, dono da
cronologia ordinária que seus compromissos evocam, será medida
alguma para desnaturar a imponência do corpo que fala, com a voz de
um tempo sem tempo, de uma história sem história, de uma
civilização sem origem. Não é a morte que emerge como tema, mas a
imortalidade que se vela e desvela-se no corpo já morto. O corpo,
matéria densa e opaca que interrompe o trajeto dos olhos no campo
visível – esse espaço sem margem, só espaço -, presentifica a
eternidade porque sem ele, eternidade seria a pura ausência. É a
contradição sobre a qual se assentam muitas das nossas religiões: a
eternidade é uma ideia que tem apenas lugar no instante, porque sua
pronúncia tem começo e fim.
Não deve ser
coincidência, assim, essa disposição triangular do edifício
tombado, erguendo-se ao alto ao mesmo tempo em que afirma no plano e
ao horizonte suas bases. Pois enquanto a alma se eleva, a gravidade
se impõe.
A cidade é esse
terreno em que os corpos são monumentos uns para os outros, ao mesmo
tempo eternos e repentinos; e enquanto os corpos se evitam ou se
esbarram, os pensamentos desenham outras formas e sugerem outros
caminhos: há muito mais matemática na narrativa acidentada do
instante e circunstância do que sugerem os utilitários imperativos
de nossa existência.