A mãe questiona o filho (mulher e homem adultos de cuja relação só é possível tomar conhecimento porque o narrador impaciente assim a declara): "Você vai beber esse leite? Tenho frio, preciso cobrir-me."
O filho, então, responde: "Não, obrigado. Pode guardar. Acabei de comer uma pizza."
segunda-feira, 25 de março de 2013
sexta-feira, 8 de março de 2013
Perna Curta e o poder simbólico
Numa delegacia no
centro do Rio de Janeiro, especializada em crimes de violência e
agressão contra mulheres, entra, de vestido florido longo,uma bela
jovem, dirige-se ao balcão de atendimento e anuncia que quer
denunciar uma agressão. A atendente pede-lhe informações básicas,
digita alguma coisa em seu computador conforme a mulher lhe presta
satisfação dos dados requeridos e indica-lhe que deve esperar ali
mesmo no hall de entrada pelo policial que irá tomar-lhe o
depoimento.
A mulher, cabelos
louros e longos, rosto delicado arranjado em expressão todavia
hostil, certamente ainda remoendo as lembranças do acontecido que a
fizera encaminhar-se àquela delegacia, recuou até o hall e
sentou-se num banco instalado junto à parede. Esperou por cerca de
40 minutos (a demora, nesse caso, era também a celebração da
ocupação do policial – e toda expectativa produzida naqueles 40
minutos deveria justificar assim a relevância do ofício que a
venerável autoridade executaria, num misto de psicólogo, ombro amigo e homem de justiça, como nem o Rei Salomão ainda quando das suas mais
inquestionáveis virtudes), quando se soube chamada para prestar seu
depoimento num quadrante sem cobertura delimitado por paredes baixas
no fim de um corredor atrás do balcão de atendimento.
O policial pediu à jovem mulher que se sentasse e sentisse-se “à vontade” (fora o
termo exato usado por ele). Vendo-a acomodada na cadeira, sentou
também ele e perguntou: “O que aconteceu?”
A mulher curvou a
cabeça abaixo da linha dos olhos do homem a sua frente, colocou a
mão sobre a testa como servisse de apoio a uma consciência repleta
das frustrações e desmandos da vida sobre seu crânio e relatou ao
policial com a voz um tanto chorosa: “Fui agredida pelo meu
namorado!”
O homem entendeu logo a
dimensão do problema, como não poderia deixar de ser, uma vez que
se tratava ali mesmo de fórum apropriado àquele gênero de
denúncia. Pediu, assim, que a mulher continuasse, detalhando a
história e se fazendo entender pela narrativa para além da
circunstância já anunciada.
A mulher levantou o
rosto, colocou a mão esquerda cerrada sobre a boca enquanto
pigarreava, adequando à voz um depoimento claro e lúcido como
seria – e se iniciou sem a insegurança e melancolia que antes sugeria a fala da jovem: “Nós voltávamos do aniversário de uma amiga
minha, começamos a discutir no carro por uma coisa boba qualquer,
que já nem me lembro, e quando entramos em casa ele se descontrolou
e me bateu.”
Nesse meio tempo, o
policial digitava no teclado como que acompanhando o
depoimento da moça, enquanto fazia sua atenção intermitentemente
variar entre a fala dela e as teclas do computador. Após concluída
a narrativa, um tanto sintética, e ainda alguns segundos depois de
uma digitação residual na qual o policial se empenhava (talvez
corrigindo erros ou colocando acentos nas vogais), trouxe ele
novamente os olhos fixos e atenciosos aos olhos dela e perguntou:
“Bateu como?”
A mulher, sumária e
resoluta como antes na história, respondeu-lhe: “Ele chutou minha
canela.”
O policial, então,
manteve-se inerte em expressão facial incrédula, pois como se não
compreendesse a fala, ou melhor, como se julgasse haver engano
qualquer naquela comunicação direta, julgou tratar-se de caso de
polido silêncio antes de lançar, reticente, a pergunta mais uma
vez: Bateu... como?
A mulher, dando ênfase
à convicção reproduzida no tom de voz intensificado,
devolveu-lhe: “Ele chutou minha canela!”
O policial, no entanto,
deu mais uma vez razão à dúvida: “Você tem certeza?”
Devo confessar aqui,
malgrado o constrangimento da vítima na situação em que se
encontrava, que compreendo e me compadeço com a estupefação
daquele senhor da lei diante da conclusão em que se encerrava o
registro. A natureza da ofensa que leva uma mulher a denunciar
criminalmente seu parceiro projeta-se muito além das repercussões
físicas daquela conduta. O chute na canela, não há dúvida,
trata-se de agressão intencionada e fisicamente plausível, mas em
cuja conotação não se justifica ou não se deveria
justificar o contexto relacionado a uma situação de denúncia como
aquela, não porque seja de modo algum lícita ou porque os danos e
riscos físicos não sejam assim relevantes e senão porque o
caráter simbólico daquela ação não endereça a ocasião de uma
ofensa tão grave. Repare que o chute na canela, não sendo episódio
comum nas brigas conjugais e nem mesmo ação recorrente em duelos
pela honra ou coisa parecida, é circunstância repetida e cabível,
por exemplo, numa comédia infanto-juvenil. É possível recorrer à
memória para lá encontrar tais imagens que não nos condicionam -
como no caso da mulher agredida - ao ímpeto da indignação, mas ao
riso e ao divertimento. Ou seja, a mecânica e a fisiologia
implicadas no gesto determinam por definição um agressor e um
agredido, mas ao insulto, pede-se que haja mais profundidade na ação
e ousadia imoral mais inescusável. A canela, por outro lado, é do
corpo apenas um membro acessório; uma extensão literal da perna que
lhe serve o caminho e a sustentação simplesmente; é o local por
excelência dos acidentes ordinários, dos impactos súbitos e
imprevistos, dos ferimentos mais grosseiros e sem conotações
particulares; é, por isso mesmo, o chute na canela a agressão
característica das crianças, almas inocentes em cujo dolo não há
ainda uma dimensão simbólica elaborada.
Concedida ao senhor,
dono das perguntas eméritas, essa nota em defesa, segue-se à
história que: o policial, ainda não satisfeito com o desdobramento
particular daquele depoimento, questiona a jovem acerca de uma
possível e suposta indisposição da memória dela, como nas
palavras mesmas usadas por ele: “Não teria sido, por acaso, um
empurrão violento escada abaixo, um tapa no rosto ou um soco no
estômago?”
A mulher parecia não
compreender a tentativa de seu interlocutor de dar rumo distinto à
história que ela mesma vivera algumas horas antes. Mas tal
procedimento parece justificar-se pelo estabelecido de que tais
agressões, sendo muito mais recorrentes (e brutais, certamente) que
o declarado chute na canela, parecem acomodar uma narrativa mais
íntegra e adequada aos autos daquela instituição.
A mulher, ainda sem dar
chance alguma à conveniência daquele desvio, perguntou em sequencia
e com alguma severidade ao policial: “O senhor não ouviu o que eu
disse?” - e concluiu em seguida: “Ele me deu um chute na canela!”
O policial, ainda que
amador nos trâmites da psicanálise, mas cheio de espírito, fez-se
entender melhor: “As vezes, nossa memória nos prega peças. Em
especial, em situações traumáticas como esta. Parece que nossa
consciência está sempre disposta a recobrir situações que nos são desgostosas com eufemismos e ilusões e
fazemos com isso sublimar tais eventos em registros distorcidos ou
enganosos do que aconteceu na realidade. A senhora pode, quem sabe,
ter tomado um tapa no rosto por um chute na canela, não?”
A mulher, a essa altura
já com uma expressão de deboche que não lhe sairia mais do rosto
então e depois, levantou o vestido florido, deixando exposta a marca
vermelha na canela em que se via as ranhuras de uma espécie de bico
grosso de calçado, talvez, uma bota militar. Segurando entre as duas
mãos com firmeza a perna na altura do joelho, direcionou ao policial
e perguntou ironicamente: “O senhor vê?”.
Diante daquela
evidência e como que para se redimir do cepticismo que o acompanhara
durante todo o depoimento, o homem levantou imediatamente da cadeira,
abriu a gaveta da mesa de onde tirou uma pistola e enfiou-a na parte
de trás da calça, um tanto agitado, quando inquiriu a mulher pela
última vez, dando como consolo uma resposta em ação: “Onde ele
está nesse momento? Vamos até lá, agora, dar voz de prisão a esse
covarde!”
A viatura se dirigiu ao
local. Dois policiais entraram na casa e anunciaram ao acusado - que
abriu a porta sem oferecer resistência - do que se tratava.
O meliante acompanhou os policias na viatura até a delegacia e teria sido preso
naquele mesmo dia, não fosse um único detalhe: tratava-se de um
desenho animado: um enorme coelho de corpo esverdeado, duas orelhas
compridas - uma ao alto e a outra dobrada ao meio, recaindo sobre a
testa -, olhos que se movimentavam neuroticamente ao redor das
órbitas ovais, e calçava botas pretas, imponentes, uma das quais,
como evidência, instrumento reconhecido da agressão.
Diante daquela
criatura, cujos jargões repetia em sentenças que não faziam
sentido algum em contexto, o delegado se viu obrigado a renunciar à
circunstância do encarceramento. Percebera a absoluta
indisponibilidade das restrições do espaço, visto que o acusado,
na condição de desenho animado, era capaz das mais inverossímeis
peripécias físicas: poderia ele passar espremido pelas grades do
cárcere ou, simplesmente, escorregar elegantemente pelos dutos de
água ou ventilação; sem falar na ineficiência incondicional das
armas de fogo com que estavam municiados aqueles defensores da
justiça para com aquela criatura sem ossos, feita em plenitude de
imagem e movimento.
Desse modo, na razão
de encaminhar o caso para jurisdição apropriada, recorreu o
delegado imediatamente ao ministério da cultura, cuja ação efetiva
foi sucinta e definitiva para tirar de circulação elemento tão
nocivo e indiscriminado perante à vida civil e a ordem do estado.
Declararam, pois, ao convicto réu em questão a única pena
cabível: a censura.
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