Entrei no ônibus com
uma sacola na mão. Procurava pelo dinheiro na carteira aberta, um
pouco confuso, a considerar que o veículo em movimento não me
ajudava o equílíbrio e nem tão pouco a pressão que me fazia, com a
atenção intermitente voltada a mim, o motorista, que deveria
recolher o dinheiro e dirigir ao um mesmo tempo, enquanto um senhor
num banco estrategicamente (ainda que a estratégia permaneça a mim
desconhecida) isolado ao lado da roleta murmurava alguma coisa em
minha direção. Entre os murmúrios distingui a sentença: “Passa
a roleta, procura o dinheiro e depois volta pra pagar.”
Desconsiderei, no
entanto, a sugestão. Não apenas porque julgasse desnecessário –
e uma vez que eu passasse a roleta, teria que esticar o braço até o
último centímetro para dar o dinheiro ao motorista, que deveria
retorcer o pescoço e recolher a passagem com apenas uma mão no
volante e o carro, provavelmente, em movimento – mas também porque
a posição que me ocupava na procura do dinheiro, pedia-me que não
desse atenção ao senhor atrás de mim.
Ele balbuciou mais
alguma coisa; talvez tenha me oferecido ajuda, mas não tive certeza se
oferecia e nem de que maneira me seria a ajuda dele benéfica.
Ao contar meus
trocados, reparei que faltavam vinte centavos e tive, então, que puxar
uma nota de vinte reais, para a qual o motorista não haveria de ter
troco, uma vez que durante a madrugada, as empresas mandam seus
funcionários ao trabalho como os mandasse a alguma expedição
perigosíssima, não cabendo arriscar dinheiro algum no trajeto. De
fato, a nota fora um problema que o funcionário tratou de rechaçar
em um acenar negativo com a cabeça. Eu ponderei, assim, que, dos
trocados que eu tinha a mão, vinte centavos faltavam para completar
o valor da passagem. Ele estendeu a mão e me pediu o dinheiro.
Entreguei-o com a sensação incômoda de que o motorista me fazia um
favor desnecessário ao me poupar vinte centavos, mas também por
conta do senhor atrás de mim que a essa altura já havia inserido
inadvertidamente dois ou três comentários ao movimento. Entre eles,
sobretudo, pensei ter ouvido algo como: “Você precisa de alguma
coisa?”
Quando atravessei a
roleta, pus-me de frente a ele, que me sorriu com ironia e me disse:
“De nada!”.
Devolvi-lhe o sorriso
apenas por dúvida e me coloquei a refletir sobre o comentário. O
procedimento, no entanto, era claro. Oferecendo o jargão corrente em
resposta a um agradecimento em questão sem, contudo, haver o
agradecimento tomado forma, o senhor colocava em evidência o mérito
de uma gentileza jamais reconhecida, e com alguma ironia, dizia-me
mal agradecido de modo a não deixar dúvidas sobre a sua conduta
presumidamente generosa.
Eu teria deixado passar
se o desconforto por ficar devendo vinte centavos ao motorista não
me tivesse roubado a tolerância que era ali necessária. Já havia
passado a roleta e me projetava pelo corredor do ônibus quando
resolvi retornar e lhe fiz a pergunta: “O que o senhor disse?” Ele ergueu a cabeça e
, cheio de orgulho, repetiu que havia dito “de nada” em razão do
agradecimento que eu deveria tê-lo oferecido por conta da gentileza
descrita quando do seu envolvimento com a minha situação. Ele, de
fato, havia-me perguntado se eu precisava de alguma coisa e nesse
instante tive certeza. Eu, todavia, não precisava de nada, ou ainda
que precisasse não teria recorrido a um estranho no ônibus. Aliás,
os vinte centavos que ficaram por conta do motorista não me deveriam
ser, absolutamente, necessários, já que à ocasião eu trazia
comigo uma nota de vinte reais, dinheiro suficiente para garantir
minha entrada no ônibus. No entanto, não pude negar que alguma
gentileza se havia postulado no concernimento do senhor para com um
que lhe era inteiramente estranho. Gentileza essa que se poderia
retribuir com a gentileza proporcional de um “muito obrigado”.
Fiquei, nesse momento, confuso e após ouvir o senhor descrever a
ocasião em que me havia feito uma gentileza, senti-me compelido a
agradecê-lo e o fiz, mas não sem um sorriso artificiosamente
empunhado, como quem não fizesse senão atender a uma formalidade.
Veja lá! Inegável que
o senhor me tenha gentilmente oferecido ajuda. Mas é incontestável
também que sua ajuda não se tenha feito absolutamente necessária.
Pareceu-me, assim, pouco justo que eu lhe fosse obrigado a agradecer
quando de mais a mais o senhor perdera todo direito a um
agradecimento ao exigir-me tão cinicamente um. Pois se foi a
gentileza de por-se a disposição que o fizera digno de algum
mérito, fora, por outro lado, a grosseria equivalente em contrário
ao requerer-me em situação como aquela um inaudito “muito
obrigado”. Pouco importa, e assim como eu havia sido forçado a
aceitar a duvidosa gentileza dos vinte centavos postos em desconto
pelo motorista do ônibus, fui também compelido a entregar ao senhor
ocioso um “obrigado” que deixou de fazer sentido algum quando da
sua imediata exigência.
Sentei-me num banco na
parte de trás do ônibus, duplamente frustrado. Alguns minutos
depois, o veículo passava por debaixo dos viadutos da rodoviária,
onde se lia aquelas celebradas frases do poeta Gentileza, dentre
elas, a famosa equação do velho também chamado profeta: “Gentileza
gera gentileza”.
Pensei mesmo comigo: a
economia dos gestos amáveis não é assim tão resumida e requer da
justiça um desdobramento a altura para os casos em que não vingar a
tautologia. Pois pode ser que o julgamento equivocado de apenas um
dos lados determine não haver proporção alguma que justifique a
vigência dessa espécie de lei de Talião às avessas.