O comércio é um jogo
curioso.
A introdução poderia
soar vaga não fosse dada à razão de mencionar certo procedimento
em que um comerciante oferece, “gratuitamente”, na compra de um
produto qualquer, um produto outro que, a principio, não denota
nenhuma relação necessária com o produto a que virá, no trato em
questão, vinculado. Chama-o “brinde” e tenta fazer sugerir que
se trata de um negócio que se justifica na simples oportunidade
dada, porque seja o comerciante um bom samaritano, louco, ou homem de
pouca a nenhuma inteligência, a título de vantagem ao comprador
que, não fosse por isso, compraria ainda assim, porque o produto em
questão é bom o bastante e o preço absolutamente razoável.
Diz-se que o bom vendedor é capaz de vender gelo a um
esquimó. Mas se fosse o caso destes ditos estenderem-se com algum
detalhamento, poderia-se também incluir que o esquimó levaria,
ainda, na transação, um espelho de bolso ou uma escova-de-dentes.
Em um grande Shopping
Center na zona sul do Rio de Janeiro, um conjunto de lojas associadas
– que compreendia quase a totalidade das lojas do edifício –
oferecia a todo comprador de seus produtos, cupons a partir dos quais
o comprador seria convidado a concorrer a um carro novo: respeitando
que a quantidade de bilhetes que o candidato ao carro disporia na
urna do sorteio seria proporcional ao dinheiro por ele gasto nestas
lojas.
O carro encontrava-se
apoiado sobre um pequeno palco, na calçada bem em frente ao
Shopping, logo ao lado da urna, que se situava atrás de um pequeno
balcão de onde um funcionário, estabelecido pelos comerciantes
vinculados à promoção, anunciaria o ganhador imediatamente após o
sorteio do bilhete. Um amontoado de pessoas se espremia na calçada a
espera. Ao todo, duzentas pessoas se dispunham como espectadores do
evento que escolheria um ganhador dentre os milhares, talvez milhões,
de cupons que, analogamente aos ali presentes, se espremiam na urna.
A ansiedade fazia com
que as conversas que tinham lugar entre aquelas pessoas parecessem
murmúrios. Isso porque nenhuma conversa deveria tomar suficiente
atenção ao ponto de fazê-los desviar-se do sorteio e do anúncio do
sorteado. Como se não bastassem os cupons alojados ali; como se o
sorteado houvesse mesmo que personificar aquela escolha, estando ágil
e disposto no momento do sorteio para que seu grito de entusiasmo
fizesse condecorar uma escolha assim batizada pelo mérito – pouco
criterioso, contudo – da expectativa. Desse modo, conversas se
iniciavam sem muita convicção, em tom de voz ameno e findavam logo
que alguma movimentação se fizesse aparente no palco a frente.
A
mulher, que retiraria o bilhete e anunciaria o vitorioso, se mexeu a
frente do microfone disposto no balcão e fez menção a dizer algo. Embora o silêncio não houvesse irrompido absoluto e
instantaneamente, foi conquistado em poucos segundos, ao custo de
algumas reprimendas e sutis indelicadezas dedicadas uns aos outros
pelos próprios ouvintes daquela sessão. Anunciou, então, que
giraria a urna - cuja forma aparente já antecipava a mecânica de um
dispositivo que a faria girar, certificando aos presentes que a
escolha não seria determinada por possíveis “lugares
privilegiados” onde a presença do cupom indicaria maiores
probabilidades de que seria esse mesmo cupom sorteado: isso porque se
havia ali premissa alguma para sorte era essa a quantidade de cupons
por indívíduo e, portanto, o dinheiro gasto nas lojas e não a
medida do manejo e a sagacidade do candidato no instante de atirar na
urna o cupom – e escolheria o bilhete inadvertidamente, sem
preparação ou parcialidade algumas, apenas se dispondo a cumprir as
recomendações a ela dadas pelos organizadores do evento.
Girou, assim, a urna
durante dois minutos e meio. Tempo necessário para a distribuição aleatória e casual dos bilhetes, mas também potencialização eficiente das expectativas, como fizesse-se rufar tambores a indicar que o resultado em espera era digno de toda reverência e atenção. Enfiou a mão na
urna e de lá arrancou o bilhete - que antes não era senão um
bilhete - e posicionou-o à frente dos olhos.
A pequena multidão fez dilatarem seus ouvidos, desfizeram-se de todos os pensamentos impróprios dedicando atenção que provavelmente não dedicaram antes nem mesmo a seus filhos, suas esposas e maridos, seus pais, colegas de trabalho ou professores, mas antes que a mulher anunciasse aquele nome, interrompeu-a o resultado de um evento outro que, desenrolando-se paralelamente ao sorteio, resultou num automóvel em alta velocidade invadindo a calçada e colidindo brutalmente com o carro novo a espera, objeto do sorteio em andamento.
A pequena multidão fez dilatarem seus ouvidos, desfizeram-se de todos os pensamentos impróprios dedicando atenção que provavelmente não dedicaram antes nem mesmo a seus filhos, suas esposas e maridos, seus pais, colegas de trabalho ou professores, mas antes que a mulher anunciasse aquele nome, interrompeu-a o resultado de um evento outro que, desenrolando-se paralelamente ao sorteio, resultou num automóvel em alta velocidade invadindo a calçada e colidindo brutalmente com o carro novo a espera, objeto do sorteio em andamento.
Responsável pelo
acidente, saiu do carro uma senhora ainda atordoada com a batida,
mas aparentemente saudável, e dispensou sobre a cena um olhar de
espanto. Os outros ali presentes haviam dispensado o mesmo olhar de
espanto alguns segundos antes: Agora, começavam a entumescer suas
expressões faciais, preparando-se para dedicar hostilidade mais
veemente a inoportuna recém chegada quando a anunciante do sorteio,
num misto de presença de espíríto e omissão de responsabilidade,
declarou: “Senhor Marcos Heleno dos Santos!”
Imediatamente, diante
do povo que naquele segundo retomava atenção sobre ela, identificou um
rapaz que, ainda sem entender exatamente o que se passava, insinuou
tratar-se ele mesmo de Marcos Heleno dos Santos. Logo, ela desceu do palco,
esticou a mão com a chave do carro e entregou-a ao ganhador dizendo-lhe, antes de partir sem delongas em retirada: “O carro é
seu. Parabéns!”.
Após o tramite
concluído as expressões hostis do público deram lugar
a novas, que no geral variavam entre a frustração e o alívio. Não era o caso particular daquele rapaz que, se segundos antes saltou-lhe um
convidativo entusiasmo e agradável surpresa com o sorteio que lhe
havia sido favorável, restabelecida a cena em que a velha e os
carros amassados tomavam parte, seu humor, então, era o do homem
irritado e desgostoso porque tinha que resolver o problema que
acabara de chegar-lhe as mãos junto com a chave de seu novo carro.
Sem perder muito tempo, foi diretamente ter com a senhora, quando perguntou-lhe secamente: “A senhora tem seguro?”
Sem perder muito tempo, foi diretamente ter com a senhora, quando perguntou-lhe secamente: “A senhora tem seguro?”
A pergunta era honesta,
já que cumpre ao proprietário zelar pelo bem de que dispõe, mais
ainda quando se trata de material valioso como aquele. A resposta nem
tanto, conquanto se lançara levianamente na forma pouco esclarecida de
uma nova pergunta: “O senhor tem?”